Naquele átimo impenetrável, em que tudo que existe se dissolve nos limites redundantes que separam dois caminhos. Ele quis tocar o queixo de sua donzela, mas tudo o que fez não foi mais que um sorriso estupidificado sem contornos, a emitir grunhidos.
– Você é tão linda...
As têmporas eram gradualmente preenchidas pelo borrão escarlate da vergonha, tais palavras em vômitos assim atropeladas... Os pés da moça costuravam círculos trêmulos no firmamento gramíneo. Do outro lado, ela nada ouvia. Havia ali um pouco de uma sujeira bonita, barro puro que a ungia no execrável da beleza temível de se aproximar. Por isso ele grunhia tanto! Seu peito por onde fazia caminho aquela flâmula irritada era não menos um cárcere que o acorrentava em respirações rápidas, ofegos interrompidos e piscadelas de sustos entrecortados. Era como adoecer para se curar e então adoecer no instante seguinte.
– Se me dedicasse ao menos um segundo dos seus...
Adoeceu desde a primeira vez que a viu através do vidro da floricultura, ela embebida em candura cantando baixo para as orquídeas de plástico. O sintoma primordial foram os ponteiros paralisados. Ficou ali, extasiado pelas sensações novas que se dissolviam em suas artérias, ouvindo o coração bombeá-las num tamborilo em frenesi macerando a racionalidade pouca. Lá dentro, tão longe, tão perto, a moça estava sempre dançando ao ritmo das notas do silêncio. Seus movimentos não tocavam nada, tampouco o assoalho. Eram repetidas flutuações delicadas, como o beijo de uma violeta que abraça a morte. Era também qualquer coisa acima da dança, da arte e da humanidade. Carregava consigo a origem de todas as pétalas. O púrpura violento que era a cor de seus olhos por vezes encontrava o marrom plácido e triste do rapaz, em descargas tempestuosas que o faziam sentir um vento vindo de qualquer lugar, revolvendo pêlos e eriçando nucas e beijando-lhe a face seca tão secamente. Nas laterais da boca da bela jardineira por vezes irrompia o rascunho do nascimento de um sorriso. Mas então a quase certa ilusão se perdia nos abismos tantos da memória tendenciosa de um doente.
– Voltarei todos os dias, e em todos eles repetirei. Eu juro.
Desaprendeu a caminhar, comer era um mergulho de esquecimento e os sonhos eram caricaturas randômicas. De lá pra cá pareceu largar partes de si porventura intrínsecas enquanto se desmanchava para renascer. Os dias se resumiam nas horas em que se prontificava a observá-la, como uma daquelas plantas, esperando o toque derradeiro que teceria o destino do mundo. Conversava um pouco com o vidro amigo e ignorava a porta sempre aberta. Sempre ali no soslaio, indicando o caminho fácil. Dar as costas era um rasgo de ponta a todas as outras pontas, seguido de muitos olhares por cima do ombro até o horizonte engolir tudo. Mas as margaridas estavam em todos os cantos, margeando tudo! Toda a botânica terrestre se voltava para abraçá-lo. A Terra era verde e outras cores e pensamentos que em segundos germinavam brotavam davam frutos e apodreciam e tudo novamente. Em extensos jardins voluptuosos onde um dia se deitariam. O gosto que desvanecia nos lábios era difícil de identificar. Antes de abraçar o sono com a dificuldade habitual, sempre se perguntava sobre sua origem. Desafio grande, deglutir a felicidade sem temor...
Ela chorava na calçada, a floricultura fechada. Seu semblante de cacos rachados podia ser visto por entre todas as ruas e quarteirões que recortavam a cidade. Tal tragédia que emanava! A lua matutina era um olho ao norte orando por ela, pois dependia dela a sua existência fugaz. Forças de todas as origens, de profundezas oceânicas e vulcões dormentes, ergueram o homem renascido em pernas ágeis num galope arruinado, enquanto poesias de todas as eras se transcreviam nas fibras latejantes: para que servem as flores, quando longe de seus vasos? E a moça e sua tristeza de motivo a saber foram apenas diminuindo, diminuindo, diminuindo, até a ínfima dimensão de uma semente nua e só.
Pois ele corria na direção oposta. Felicidade – essa fuga eterna.
Me sinto lendo um conto como tantos outros de livros, porém melhor, mais trabalhado e profundo. Muito rica a descrição, mas o que mais impressiona é a capacidade de criar ambientes tão diferentes em cada texto sem repetir lugares e descrições.
ResponderExcluirMuito bonito, vivi os sentimentos profundos do homem enfermo e sua solidão.
Certamente está na lista dos seus tops-contos hehe
abraço guiii !!
continue escrevendo =DDD
Peço desculpas pela minha ausência neste teu espaço tão intenso e cheio de luz. Gosto das tuas letras e da forma como elas reverberam em mim... "Lá dentro, tão longe, tão perto, a moça estava sempre dançando ao ritmo das notas do silêncio." - Lindo demais isso!
ResponderExcluirMuito bomm, a narração parece um filme passando na nossa cabeça. Perfeito ^^
ResponderExcluirCada vez melhor.
Quando vc fala pra eu ler seus posts, não leio na hora porque seria um crime.
ResponderExcluirTe ler tem que ser assim, quieto, sem barulho, sem ninguém me atrapalhando, pra eu poder ouvir cada som que surge das suas palavras perfeitamente escolhidas.
Você é incrível.
Impossível descrever tamanha sensibilidade na escrita. Voce é incrível! Não é fácil, ao contrário, é raríssimo escrever dessa forma.
ResponderExcluirPerfeitas palavras em simetria com a fragilidade das imagens retratadas neste conto.