A janela era um círculo pequeno listrado por finas hastes de aço. Ainda assim, dedos de luz escapavam daquela pequena prisão e chocavam-se na parede branca na maior velocidade permitida por Deus, às vezes ricocheteando na cama de panos também brancos, esquentando meu pé revestido em casca dura. Tudo ali era branco. E há no branco o fogo tímido próprio do que é luminoso, um martírio de cores que turbilhona as águas onde se dissolvem essências revoltas em trevas. Mas como fogo que é e se faz, tímido ou não, queima. Meus olhos dardejavam na órbita em todos os limites das pálpebras em busca de tons diferentes – mas minha pele empalidecia num tecido imberbe e coalhado onde não mais se fazia refúgios. Que saudade do verde das folhas e seu cheiro de qualquer coisa orgânica indecifrável! Quando Maria e eu deitávamos no gramado do sítio pra desenhar nuvens era de verde que nos banhávamos, e havia a inocência sublime dos braços que se levantam para tocar o céu e pedir a bênção do azul. Sinto o gosto de tâmara ocluir a garganta... Suas palavras eram veludo e poesias, pequenos cânticos, odes secretos que apenas eu orquestrava. E nada me interessava saber no mundo senão de seus segredos, de sua intimidade, daquela criptografia alienígena que tecia seus movimentos de corpo e de rompantes de insanidade perfeita em volúpias vermelhas. Aqueles cabelos de topázio líquido...
Agora eram quase pretos. Quando entrou no quarto olhou-me redonda numa desconfiança trôpega e devastada por qualquer coisa que se desenhava no meu rosto. Não quis perguntar, ela geralmente não respondia sem enigmas. Caminhou arqueada nas pernas estranhamente venosas em cordões púrpuras sobre terreno róseo. Ainda possuía a austeridade dos lábios crispados contendo as várias palavras que queriam nascer, porém já germinadas na sua feição toda ângulos.
– Você não parece nada bem, João. – sua voz era um trovão eterno. Um lamento triste que ansiou retumbar em cada osso e carne e cartilagem e tudo além. Não havia a umidade da chuva pra precipitar em mim, somente suas lágrimas que pingavam no meu couro cabeludo em goteiras preguiçosas. E um abraço frouxo cheirando sal.
Como não conseguia falar - lacerações na língua -, tateei. Desenhei na sua cintura, com o indicador em meia unha, caracóis extensos que nasciam em círculo grande e morriam no abismo do ponto. Onde morava seu umbigo grávido ocluído pelo vestido carmesim. Tortuoso, sem jamais embarcar na estrada do reto. Pois são das curvas de quem não vê a si mesmo que ladrilhei meu caminho em direção a desgraça. O torto que representa o falho, o errado, o atroz. Dos farelos celulares que ficaram pelo caminho levando consigo o líquido da memória e da estrutura desgastada que aqui lhe sorri em sangue coagulado. Minha viagem ao vazio era solitária – e a mulher não compreende. Ela construía ao redor do volume que meu corpo ocupava no mundo o contorno de uma identidade que eu não mais possuía, através do teor ácido das lembranças que eu quase podia ver escorrendo por seus poros. O silêncio cheirava a culpa que ela cuspia de soslaio pela expectativa que nunca se cumpria. Vitral sem conserto, eu. Para ela: movimentos randômicos sobrepujados por loucura, e nada mais. E de que adiantariam suas palavras, fossem trovões ou veludos?
Tampouco pupilas que cravejavam em mim toneladas de piedade despertavam alguma faísca da faísca de alguma coisa. Maria... E essas cicatrizes invisíveis, você não vê? Quando foi que seus cabelos ficaram tão escuros?
– Verônica e Roberto estão bem, sei que você pensa muito neles. Outro dia a professora de matemática do Beto me disse que ele seria um excelente engenheiro, de tão inteligente que é! Eles sentem muito a sua falta, você sabe... – falava como se tivesse lendo um texto o mais rápido que pudesse, oferecendo para deleite sua nuca, enquanto fingia olhar para além da pequena janela com o nariz em conta gotas.
Desbastado pela tormenta, irrompi na direção da senhora para degolá-la. Brandido em fúria. Seu pescoço, pano a rasgar. Roberto seria seu novo amante? Não poderia... Ela deveria me amar até o seu último suspiro! Essa fora a maldição que concordamos em nos lançar a cada beijo por línguas de fogo e seus nós de bocas unidas debaixo da alvorada de todos os dias. Ah, como é execrável cruzar a barreira do insano! Perdi a compreensão e a manifestação da linguagem que nos mantinha pessoas do mesmo universo. E se não há mais palavras que reclamem à incompreensão, eis a violência que somos todos nós, uns mais ou menos polidos, porém ainda partículas desse cosmo de hecatombes reunidas. Não há mais volta.
Talvez também não a compreendesse bem. O nome Roberto já morava em algum lugar das terras incendiadas de minhas memórias. Irresgatável nesses campos inférteis. Mas estrangulá-la ao som de seus ruídos de dor suspirada, como quem não quer chamar atenção do mundo para a besta, dava-me certa dose de prazer. A pele fina quase rasgando era a minha força provando o amargo sabor de quem olha altaneiro perante a vítima derrotada. Logo ela também cruzaria a fronteira. Larguei-a.
O choro agora era cachoeira vívida tropeçando sobre suas mãos em rocha que apertava as sobrancelhas, como se ali fosse o ponto único, a rede ímpar para agarrar-se a si mesma. Debruada sobre a cama de visitante, consumiu-se em desalento. A desgrenhada cabeleira morena, tão rala quanto conseguia, desprendia-se pelos dedos em punhos semicerrados. Flutuando até o chão numa viagem demorada. Sim - Maria despedaçava-se, deixando partes de si antes de partir. Borracha imprestável no emaranhado de sua fuligem. A verdade raramente se apaga. Mas existe a morte, muito viva em suas preces notívagas, eu bem sabia.
Sua figura inteira se contorceu num rompante ao dissabor da desordem. E ao deixar o quarto, cuspiu com o supetão que espreita o dissabor do descontrole. A nódoa de saliva caminhou gelada nas minhas têmporas.
Até cair na garganta, e ser digerida em doces lembranças.
Seu psiquiátra!! Não tem limite pra aprofundar na mente humana.
ResponderExcluirEsse é completamente diferente de todoos
ResponderExcluir*_______________________________*
Por mais que chega ao romance, os conflitos internos do relacionamento, foi interessante a construção desse texto. As palavras muito escolhidas as cores, confundem no início dando uma sensação de prisão que é desmanchada pelo aparecimento da outra personagem. Ao mesmo tempo se reconstrói no conflito interno.
Adoreeeeeeeeeeeeeeei muito belo e tudo *-*
Apesar de não ter entendido certas partes, adorei ler todas elas
abraçooooooo!! continue escrevendo GUI!!! =DDD