sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sanidade

[00:45]

A mão espalmada no azulejo frio e o suor em gota única escorrendo pela testa no seu sinuoso caminho breve da vida breve que tinha até respigar na privada e bolhas sujas saltitando depois. A pulsação resfolegava no peito nu na iminência da dor já conhecida. Que veio numa torrente amarelo-opaco impetuosa e ardida e áspera e quente e se tingiu no fim pelo escarlate enegrecido do meu líquido vital. Coloriu o enlameado de outrora com tintas de desespero e fechei os olhos lacrimejados na resignação torpe de quem quer clemência pelo sofrimento constante. E quando o gosto do silêncio se desvaneceu nos meus lábios secos desisti da piedade e acionei a descarga para quebrar aquela sinfonia maculada pelo podre de mim. Respirava pela boca como um vira-lata febril.

[3:13]

O sono não havia de durar muito e eu sabia mesmo nos meus anseios mais infantis. Abri os olhos desejando o anúncio da morte mas o que veio foi um escarro verde que desmanchei na fronha branca. Numa olhadela rápida em mim mesmo eis um relevo erodido por feridas exaustas na tentativa de cicatrização com manchas decorando o cenário do meu âmago dolorido. O espelho logo ali era o algoz da noite. O vidro da realidade costurava no reflexo a silhueta de um homem sadio a turbilhonar sobre si mesmo na cama no chão na parede sem motivo aparente. Tateei nas trevas e encontrei o termômetro. A luz da lâmpada pareceu queimar meus olhos crepitando lentamente e nada na minha vida eu conseguia explicar. Além do frio justificado pelos quarenta e um graus exibidos no visor.

[5:00]

- Alô, Laura?

- ...

- Eu sabia. Sabia que você não ia me atender! É sempre assim quando preciso de você.

- ... Vinícius? Eu estou dormindo. Ainda está escuro... São cinco horas!

- E daí? Será que não posso interromper seu sono de donzela? Você pode, não é? Você pode me deixar aos pedaços nessa desgraça de quarto!

- O que aconteceu? Por que está falando assim?

- Estou doente, e você sabe. Sabe que é a causadora! Que desde então eu sou esse moribundo de merda que fica contraindo tudo que existe e você nem se importa!

- Vinícius, eu já disse, você precisa se tratar. Entenda que acabou. Como tudo na vida. Tenta seguir em frente, pode ser?

- Vou, vou seguir em frente.

[5:38]

É tão vergonhoso além de fraco e até demente pensar que eu um dia acreditei que havia alguém ou ela por mim como eu por ela. Por vezes me imaginei em estradas desertas só o asfalto e o mato verde. Ela estaria logo do meu lado como a extensão mais particular do meu corpo e com aquele sorriso desmesurado que ela sempre lançava quando queria alguma coisa eu seguiria em frente e nada mais precisava existir. Que todos morressem! Assim eu seria o único alvo daquele olhar lascivo azul e grande que só ela tinha. O sentimento que te nutre pra viver também te mata naquele instante em que a pessoa colocada sempre ali e sempre ali parece imortal e portanto pode-se nela descarregar a ira dos dias de chuva. Ainda assim como entender que num relapso num relâmpago num lampejo de segundos a chama que inflamava o amor foi engolfada pelo sopro do vazio? É nesse momento que todos os alicerces ruem e a racionalidade se esvai e com ela todas as memórias se apagam no tempo. Deus sabe que eu faria tudo. Esse Deus que agora existe tanto! Penso nele como o sorvedouro de pífias esperanças jorrando em fontes escondidas. Faria tudo.

[6:44]

A cada elevação do tórax na inspiração entorpecida ela cravejava com mais força as raízes a perfurar as ranhuras ictéricas da pele. A planta se erguia majestosa bem diante dos meus olhos e os galhos muito verdes retorciam no ar só se limitando ao teto. As raízes remexiam qualquer coisa dentro de mim mas não era nada tão doloroso quanto aquela epopéia fastidiosa que eu haveria de escrever não sem pesar com sangue lágrimas suor escarros e pus. As folhas esfareladas cujo verde agora morria num podre marrom padeceram sobre meu corpo-solo e ali mesmo montaram serrapilheira. A erva daninha brotou das paredes e saltou até a quase árvore de modo também quase vampiresco em busca da seiva da vida que eu nunca mais haveria de provar. Trovejei sobre mim mesmo palavras de êxtase e insônia. A mão não podia ser engolida e portanto eu não conseguia desaparecer num ponto insignificante do universo e ali ficar. As raízes mesmo mortas já atravessavam pelas minhas costas e uma nova árvore surgia em direção ao chão. A cama que se quebrou num estampido agudo e ao mesmo tempo me apontava o abismo entre a sanidade e a loucura convidativa. Caí ali no pandemônio escuro que se revolvia num líquido fluído e espesso de morte. E acabou... Já não estou mais doente.

4 comentários:

  1. Nossa!
    Gostei muito desse texto! Ter sido em 1ª pessoa me passou ainda mais a angústia física e psicológica do personagem. Vítima da doença, vítima da vida e acolhida pela morte. Muito legal o ponto de vista.
    Mais uma vez, parabéns meu caro amigo!

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  2. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh *__________________*
    Saudade dos seus textos.Impressionante a atmosfera desse. Depois de algum tempo sem ler nada seu, um ótimo recomeço. De início imaginei se tratar de uma história unicamente de doença do corpo, mas tornou-se interessante e digno a tantos outros belos contos sobre sentimentos, uma história de doença da alma e do amor.
    Não deixo de comentar das imagens que acho mais incríveis, das belas metáforas que você sabe escrever, entre a descrição da doença, tão repleta de secreções e o final de apodrecimento e plantas que adoro hehe
    abraçooo
    não pare de escrever de forma alguma!
    ADOREI!!! FANTÁSTISCO E SUBLIME! =DD

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  3. Sensacional!
    Você tem o DOM! *---*
    Os seus textos são incrivelmente trabalhados: a atmosfera, os sentimentos... tudo. Senti cada palavra, e adorei a descrição dessa doença da alma,e por fim, sua fatalidade.
    Parabéns!

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  4. o ruim de ler algo bom e que se tem vontade de devolver na mesma moeda;o que é difícil.
    bom saber que existem aqueles que sabem como esmiuçar o que todos compartilham mas não expressam de uma forma tão...bonita,nojenta,triste,alegre,complexa,simples...acho que toda sensação/experiência é digna de espaço e um estudo e esse texto forneceu isso.Forneceu até fragmentos das sensações descritas ,de texto pra pele, e inúmeras especulações.
    bem,foi bom.muito bom.

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