sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Conto sem título

E nos meus olhos sua imagem se configurou num quadro de outono. Sua aparência, antes mesmo da beleza, emanava algo de sagrado. Voluptuoso. E quando a solidão das noites quentes me abraçava em seus ventos de amor, era a sua silhueta de gestos simples e sorrisos cálidos que moldava cada um dos meus pensamentos. Quando as incertezas sobre o futuro criadas pelo platonismo de meu sentimento inundavam o íntimo, as batidas aceleradas em meu peito regiam a única sinfonia que quebrantava o silêncio nas trevas.

Não me esquecerei daquela tarde primaveril que foi palco do nosso primeiro encontro. Seu sorriso de um amarelo claro distribuído em dentes grandes não tão alinhados revelava uma timidez estampada numa feição esguia, de traços suaves e não muito decididos. Para compensar sua falta de jogo de cintura, falei sem parar sobre assuntos pouco interessantes. Contei sobre o passado, sobre os amigos, sobre os casos de outrora e sobre sonhos. Muitos sonhos: de constituir família, criar bebês que correriam em jardins verdejantes e viajar muito. Disse muito, e a resposta vinha em sorrisos grandes e amarelados. Aquele mistério me corroia.

Insistia que sua vida não tinha nada demais. Que viera de uma família de classe média e que trabalhava na redação de um jornal. Vestia-se muito bem, e estranhamente evitava o contato por telefone e encontros em lugares fechados. Culpava o cigarro. Com o tempo, depois de várias indagações repelidas por respostas curtas e diretas, a doença do amor manifestou um sintoma grave: a desconfiança.

Sem controlar meus atos com precisão (ao menos eu prefiro crer que foi assim), vi-me vagando pelas ruas e espionando sua vida. Não levava muito jeito para aquilo, bastava que virasse o rosto e eu estaria à mercê de seu julgamento. De alguma forma, por sorte, consegui espreitar até a casa em que morava e esperei do lado de fora, em busca de brechas para que eu digerisse mais informações sobre sua vida pessoal. A residência era simples e tão pacata que me lembrava por completo a vítima de minha espionagem. Uma casinha exatamente como aquela que as crianças desenham ao ingressar nas escolas, com apenas duas janelas e uma porta.

Alguns minutos se passaram e então um ruído ensurdecedor irrompeu daquele casebre. Um som pesado, encabeçado por uma voz que parecia possuída, fazia tremer o firmamento até os limites da rua. Nunca havia dito nada sobre o seu gosto musical aparentemente tão excêntrico em nossos poucos encontros. Aquilo perdurou por alguns minutos e os vizinhos, um a um, se prostravam enraivecidos na porta de seus aposentos, aos cochichos. Nenhum deles parecia realmente disposto a impedir aquela música que, embora eu não conseguisse sequer entender o que o vocalista balbuciava, parecia agressiva e num volume demasiado alto para as quase meia-noite que se completavam.

Bati na porta, com força, pois o interfone parecia inútil. Depois de alguns segundos, a música se encerra e o rangido da porta revela a mesma face esguia de horas atrás. Não me questionou como havia conhecido o lugar onde morava, mas deu um sorriso de meia boca muito diferente do costumeiro que me paralisou. Ao fundo, na casa, reparei que os cômodos pareciam pintados à tinta preta e não reconheci nenhum móvel, a despeito do meu campo de visão ser o suficiente para uma caracterização simplória de uma residência qualquer.

- Por acaso se perdeu? – vociferou, como se houvesse raiva naquela expressão serena. Algo me fez parecer que não me reconhecia, mas não falei nada. A síncope que me afugentara fazia com que meus pés tremessem e meu desequilíbrio era explícito. O sorriso de meia boca persistia.

Corri e não olhei para trás. Em casa, lavei o rosto e subi para o meu quarto, que estranhamente estava mais desarrumado do que de costume. Não me importei, apenas queria dormir para esquecer aquele estranho episódio. No meio da madrugada, o titilar estridente do telefone me colocou de pé na mesma euforia em que eu havia chegado. Eu não tinha dúvidas a respeito de quem estava do outro lado da linha, ainda que fosse alguém que não gostava de comunicações por telefone e que nem sequer sabia meu número. - Estou esperando você voltar. – foram as últimas palavras.

7 comentários:

  1. Adoro esse conto! *_* Ele é simplesmente magnífico!

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  2. Lindo ! As palavras são tão...fortes e a curiosidade sobre o sexo do personagem dá mais emoção ao conto, muito foda.

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  3. perfeito! o conto tem uma face marcante, intrigante e acima de tudo atormentadora. Parabens!

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  4. concordo com todos, magnifico o conto, q deixa por parte do leitor escolher o que mais lhe agrada com relaçao do sexo dos personagens. Minha especulaçao seria que o narrador eh homem e a personagem que ele descreve mulher, mas isso vai de cada um! otimo gui, sempre se superando nos contos, e eu reforço sempre, q AMO o modo como vc busca adjetivos exatos, que se encaixam perfeitamente em suas descriçoes, que sao profundas, quase palpaveis e na medida certa! continue assim ^^
    =***************

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Ah como é bom ver a perfeita concordância!

    Abro minha porta de adorno empoeirado e deixo mantras de outono entrar.
    Deixe recado caso eu não esteja, não repare nas flores murchas do quintal. =)

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  7. Esse me impressionou.
    Talvez por me parecer próximo,
    íntimo meu..sei la.
    É dakelas coisas q vc lê e pensa..
    putz, tudo a ver.

    Amei mais uma vez.

    =)

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