sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Amanda

Um simples olhar desnuda. Quando as pupilas se observam o íntimo se revela no instante em que um mar de suposições quase sempre verdadeiras inunda a mente. Porque será que ele está olhando para mim? Será que ele quer conversar comigo? Ou ainda: e se ele quiser sentar perto de mim? Um movimento qualquer de sobrancelha pode significar um convite à amizade ou estampar a indiferença. Preferi não movimentá-la. Sei que, se alma de fato existe, ela se esconde nos olhos... Quando fitei aquela silhueta de uma serenidade assombrosa me retesei na cadeira. Não se tratava de beleza. O rapaz mirava o professor com uma disposição tão curiosa que as conjecturas começaram. Era inteligente, eu aposto! Tinha cara de quem já lera uma gama de livros, muitos dos meus preferidos inclusos. Na última fila de aposentos, via-o pelas costas coçando a nuca com certa frequência. As unhas meticulosamente cortadas, rente à curvatura dos dedos... Tão certinho, o moço. Organizado com certeza. Talvez chato quando invadiam seu espaço. Com o decorrer das aulas trocou algumas palavras com as duas pessoas ao seu lado que eu não me pus a reparar. Sorria de uma maneira infantilizada, dava vontade de abraçá-lo.

Em casa me senti estúpida. Amanda, sua imbecil, pensando numa pessoa que você nem sequer conhece só por uma troca de olhares que não preenchera sequer um décimo de segundo? Atrelada mentalmente à aparência de alguém somente pela imagem? Mesquinho demais! Mas eu eventualmente me cansava muito rápido quando me dispunha a autoflagelação e não demorou muito para que eu me flagrasse matutando formas de abordá-lo. Melhor, fazê-lo me abordar. Acordei cedo para passar uma camisa de banda, selecionar uns apetrechos meio nerds e trocar de mochila. Usaria a da época de colégio, cheia de broches e chaveiros. Em um olhar, ele seria capaz de saber tudo o que gosto.

Pela primeira vez não cheguei atrasada e tive a sorte de encontrá-lo num movimento peremptório de sentar-se perto do quadro. Eu jamais o faria em minhas condições normais, mas fui com minha timidez teatral tão bem treinada. Trocamos alguns olhares, mas ele não parecia interessado na ornamentaria que eu preparei para impressioná-lo. Num impulso de soberba soltei o cabelo, acertando-o propositalmente com o emaranhado loiro.

- Desculpa!
- Sem problemas... –
A voz era grossa, mesmo aos sussurros.
- Às vezes tenho que domar essa juba! – Ele deu um riso de meio lábio e se voltou para a Física. Muito inquietante o silêncio de quem não tem o que falar. Não me contentei:
- Você é daqui mesmo? – Minha voz estava tão plástica! Nem parecia eu falando...
- Não não, sou do Amapá.
- Ah... – Não fitei-o nos olhos para fingir desinteresse.
- Você é, não é? – Ele falou algo por conta própria, finalmente! Uma sensação de vitória preencheu meu peito e me senti vitoriosa. Manipuladora, forte! Tinha as rédeas da situação mais cedo do que me supunha capaz.
- Sou o quê?
- Daqui, oras.
- Ah, sou sim. Você veio só pra estudar?

- Sim, repeti o terceiro ano duas vezes. Minha mãe me expulsou de casa e estou morando aqui com meu primo. Enquanto termino o ensino médio, faço o pré-vestibular.

Esbocei um raspar de gargantas fingindo interesse. Não era culto. Não da forma como eu esperava. As unhas eram roídas e cospidas, fato que eu não reparei à distância. Ele se coçava tanto que parecia que uma mácula espiritual tomava conta do seu corpo. Sua letra de caderno-de-caligrafia me irritava. Por alguns segundos senti desprezo. Continuamos conversando durante um tempo e eu percebi que era uma pessoa determinada, na verdade eu estava me forçando sem muito empenho para ver algo de bom em Rafael (que disse seu nome antes mesmo de eu perguntar). Para o seu físico corpulento e escangalhado tinha uma personalidade até muito sensível. Falar de problemas logo no primeiro bate papo não é bom sinal, revela uma ingenuidade própria de crianças.

Quase deixei escapar um “ufa” quando o sinal ecoou. Voltei a sentar nos fundos, e me limitava a erguer a sobrancelha quando os olhares se cruzavam eventualmente nos intervalos. Como eu era patética por achá-lo patético! E mais ainda por não me incomodar com isso.

Pelo menos entendi. Fico apaixonada por personagens da minha própria mente, que porventura me pregam peças se escondendo nos olhares alheios. Talvez seja amor próprio, afinal...

3 comentários:

  1. Aaaah, como consegue ver as coisas de um ângulo tão diferente, sr. Guilherme Navarro?

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  2. se alma de fato existe...ela se esconde nos olhos!
    PQP!!
    vc eh o cara hein?!
    Naum seja médico e sim ESCRITOR
    eu ia gastar todos os meus neuronios pra pensar nisso KKKKKKK
    te amo
    ficou lindo

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  3. UHAUAHUAHUAHUAHUHAUHA
    eu ri quando li o conto, vi semelhança com um caso q vc me contou esses dias.
    adorei, mesmo, o modo como surpreendeu no meio do conto, de fato, nos enganamos mto com as pessoas, as impressoes, as aparencias.

    "Pelo menos entendi. Fico apaixonada por personagens da minha própria mente, que porventura me pregam peças se escondendo nos olhares alheios."

    e esta frase me fez pensar se a vida seria melhor se n nos decepcionassemos com as pessoas,n em questao de apaixonar, mas por afinidade mesmo, amizade...pense em quantos personagens deixaram de ser protagonistas em sua treama?
    acho q a resposta eh nao, mas vai d cada um...
    fantastico, e mto reflectivo.

    =************

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