Os pezinhos bateram na tábua corrida, timidamente. A criança entrou, com o papel enrolado entre os dedos sebosos. Eles estavam lá, ocupando divãs distintos. O pequeno menino entendia. Ninguém falava. Ele sabia que escolher uma das poltronas significaria optar por um lado no campo de batalha. Embora a vontade de fazê-lo existisse, não queria se envolver. Sentou no chão e os olhos, desejosos de escapar das pálpebras, fitaram a mulher diante de si. Por um momento a mãe enquadrou-o, incisiva, e Marcelo sentiu que ela lia os seus planos.
- O que você trouxe aí? – sua voz arfava, no comumente trepido dos que fingem interesse.
- É uma prova de matemática... – entregou-lhe sem rodeios, movido pelo receio de ser ignorado.
- Muito bom, meu filho! Você foi brilhante! – no fundo repudiava-o por aquele golpe. As nódoas que secavam sua garganta não poderiam ser expelidas naquele instante. Garoto esperto! Ela teria que esperar o filho se retirar para prosseguir. Respirava profundamente e seu sorriso se alongava para depois contrair - gestos de perfeito ritmo que denunciavam sua plasticidade.
O pai não era de muitas cerimônias, e por isso o exímio resultado do filho não o teve como vítima. A face austera, com as saliências herdadas de uma adolescência repleta de acne, contornava-se com as características delineações de quem aprisiona uma honra lacerada. Faixas horizontais acima dos olhos e o suor em ebulição por toda a pele. A mudança periódica de postura no sofá quebrava o silêncio da falsa bonança. Absorto na seleção das palavras mais poderosas, mastigava as unhas como quem busca o cerne de um alimento com muita polpa. Cuspia os fragmentos à longa distância. Abraçando os joelhos, a criança observava como cada pedaço de unha dilacerada era lançado cada vez mais próximo de sua mãe. Mesmo em sua inocência, estava muito claro: provocara-a para a guerra.
- Marcelo, vá para a cama, já está tarde e você precisa acordar cedo.
- Mas pai, amanhã é sábado e são somente oito horas! – trovejou, sem entender de onde viera o impulso para tais palavras. Não era costumeiro questionar as ordens de seus pais.
- O que está acontecendo nessa casa, afinal? Tudo o que eu falo precisa ser questionado? Eu exijo mais respeito, moleque! Vá logo para a sua cama se não quiser me ver mais nervoso!
Quando sentia raiva, os olhos imediatamente se umedeciam com as lágrimas de quem oprime a própria fúria. Já era sem êxito seu esforço de apaziguamento. Manteve a visão no firmamento e, quase como quem foge da iminência de morrer, entrou em seu miúdo quarto e fechou a porta. Vagava de um lado para o outro, em movimentos repentinos de raiva que lhe custaram alguns punhados de cabelo. Seu peito doía, no compasso facilmente audível da bomba que pretendia estourar sua caixa torácica. Não ouvia vozes, mas sabia que a atmosfera entraria em combustão em poucos segundos. Ele precisava dormir o quão rápido conseguisse. Desfaleceu na cama, cobrindo-se por inteiro e pressionando os ouvidos com as palmas das mãos. Mas é impossível calar a mente. Pôs-se a imaginar quais palavras rugiam nos cômodos de sua casa. Um enorme sentimento de pena de sua mãe invadiu-o por completo. Amava o pai, mas nos momentos mais frágeis era a figura materna que lhe surgia como ícone. Construiu em sua criatividade infantil agressões físicas, morais, apelos de um casamento em migalhas. Narrava para si o epitáfio de sua própria família. Ergueu-se, já em prantos, e deixou uma fresta da luz da copa adentrar em seu aposento. Vivia a cruel dualidade de quem não tem forças para enfrentar as adversidades, mas tem curiosidade para entendê-las e esmiuçá-las para então se martirizar com a verdade. Covardia vaidosa! Mais calmo, tentou confortar-se. Talvez nada estaria acontecendo. Sempre fora um menino sentimental em demasia. A indulgência para consigo veio a se fragmentar, quando as vozes no saguão esbravejavam a destruição quase palpável.
- Você não tem escrúpulos, não tem honra, não tem dignidade! Há quanto tempo está me traindo? Vamos, fale a verdade de uma vez por todas!
- Rodrigo, pare! As coisas não precisam ser conversadas dessa maneira!
- De que maneira você quer, então? – sons de estampido – Quer que eu fique calmo em desperdiçar quinze anos da minha vida?
- Me perdoe, por favor...
Marcelo perdeu a sustentação das pernas, caindo de joelhos. Chorava alto, em berros plenos como de quem sente a dor física de um corte profundo. Clamores que, entretanto, ninguém parecia notar...
- O que você trouxe aí? – sua voz arfava, no comumente trepido dos que fingem interesse.
- É uma prova de matemática... – entregou-lhe sem rodeios, movido pelo receio de ser ignorado.
- Muito bom, meu filho! Você foi brilhante! – no fundo repudiava-o por aquele golpe. As nódoas que secavam sua garganta não poderiam ser expelidas naquele instante. Garoto esperto! Ela teria que esperar o filho se retirar para prosseguir. Respirava profundamente e seu sorriso se alongava para depois contrair - gestos de perfeito ritmo que denunciavam sua plasticidade.
O pai não era de muitas cerimônias, e por isso o exímio resultado do filho não o teve como vítima. A face austera, com as saliências herdadas de uma adolescência repleta de acne, contornava-se com as características delineações de quem aprisiona uma honra lacerada. Faixas horizontais acima dos olhos e o suor em ebulição por toda a pele. A mudança periódica de postura no sofá quebrava o silêncio da falsa bonança. Absorto na seleção das palavras mais poderosas, mastigava as unhas como quem busca o cerne de um alimento com muita polpa. Cuspia os fragmentos à longa distância. Abraçando os joelhos, a criança observava como cada pedaço de unha dilacerada era lançado cada vez mais próximo de sua mãe. Mesmo em sua inocência, estava muito claro: provocara-a para a guerra.
- Marcelo, vá para a cama, já está tarde e você precisa acordar cedo.
- Mas pai, amanhã é sábado e são somente oito horas! – trovejou, sem entender de onde viera o impulso para tais palavras. Não era costumeiro questionar as ordens de seus pais.
- O que está acontecendo nessa casa, afinal? Tudo o que eu falo precisa ser questionado? Eu exijo mais respeito, moleque! Vá logo para a sua cama se não quiser me ver mais nervoso!
Quando sentia raiva, os olhos imediatamente se umedeciam com as lágrimas de quem oprime a própria fúria. Já era sem êxito seu esforço de apaziguamento. Manteve a visão no firmamento e, quase como quem foge da iminência de morrer, entrou em seu miúdo quarto e fechou a porta. Vagava de um lado para o outro, em movimentos repentinos de raiva que lhe custaram alguns punhados de cabelo. Seu peito doía, no compasso facilmente audível da bomba que pretendia estourar sua caixa torácica. Não ouvia vozes, mas sabia que a atmosfera entraria em combustão em poucos segundos. Ele precisava dormir o quão rápido conseguisse. Desfaleceu na cama, cobrindo-se por inteiro e pressionando os ouvidos com as palmas das mãos. Mas é impossível calar a mente. Pôs-se a imaginar quais palavras rugiam nos cômodos de sua casa. Um enorme sentimento de pena de sua mãe invadiu-o por completo. Amava o pai, mas nos momentos mais frágeis era a figura materna que lhe surgia como ícone. Construiu em sua criatividade infantil agressões físicas, morais, apelos de um casamento em migalhas. Narrava para si o epitáfio de sua própria família. Ergueu-se, já em prantos, e deixou uma fresta da luz da copa adentrar em seu aposento. Vivia a cruel dualidade de quem não tem forças para enfrentar as adversidades, mas tem curiosidade para entendê-las e esmiuçá-las para então se martirizar com a verdade. Covardia vaidosa! Mais calmo, tentou confortar-se. Talvez nada estaria acontecendo. Sempre fora um menino sentimental em demasia. A indulgência para consigo veio a se fragmentar, quando as vozes no saguão esbravejavam a destruição quase palpável.
- Você não tem escrúpulos, não tem honra, não tem dignidade! Há quanto tempo está me traindo? Vamos, fale a verdade de uma vez por todas!
- Rodrigo, pare! As coisas não precisam ser conversadas dessa maneira!
- De que maneira você quer, então? – sons de estampido – Quer que eu fique calmo em desperdiçar quinze anos da minha vida?
- Me perdoe, por favor...
Marcelo perdeu a sustentação das pernas, caindo de joelhos. Chorava alto, em berros plenos como de quem sente a dor física de um corte profundo. Clamores que, entretanto, ninguém parecia notar...
Essa sensação de pais em guerra é tão desagradável e angustiante... Mais uma vez conseguiu transcrever de maneira perfeita as emoções humanas, oni.
ResponderExcluirNossa me identifiquei com duas coisas..
ResponderExcluirPrimeiro as acnes ¬¬
E segundo qdo ele segura o choro...Eu encho meus olhos de lágrimas e elas não chegam a cair..eh mto ruim,me da raiva mas eu naum choro T_T
Ficou lindo e bem opinativo Gui..
e eu combino com faculdade sim ¬¬
te amo biba
nossa! ficou muito perfo esse! era com seu eu estivesse presente, vendo a cena....
ResponderExcluirParabéns!
Que foda. Super triste, quase chorei ;_;
ResponderExcluircredo, esse conto me fez ateh arrepiar!!!
ResponderExcluirsem palavras para dizer o quanto este conto foi palpavel!!!
com angustia, odio e suspense do inicio ao fim ele me prendeu d um tal maneira inesplicavel, li o conto duas vezes, a primeira mto rapido, me senti como o menino, com adrenalina a mil, na segunda procurei ler mais devagar e mastigar melhor as palavras!!!
excelente!!!!!!!!
senti dó do menino, odio do pai, e reprovaçao da mae!!!
parabens!! nunca pare d escrever, vc tem uma sensibilidade incrivel para isso!!!
=***************
Sem palavras para expressar como você expressa muito bem os sentimentos para cada situação.
ResponderExcluirEu nunca vivi uma situação assim mas durante a leitura eu me senti como se fosse o Marcelo.
Parabéns