Era do tipo de homem que cataloga, analisa, discerne. Desse tipo raro. Ourives do próprio caráter. Bom em palavras cruzadas, jogos de tabuleiro, desafios de raciocínio. Bom em qualquer tipo de diversão solitária. Também dotado de muita minúcia, devorava detalhes por mais detalhes e mais e mais. Sempre implacável com os erros ortográficos. Ao revisar os textos dos colegas, comprimia a visão e corrigia consigo. Em silêncio. Repudiava o papel de piegas. Apesar de, na maioria dos casos, a crítica que não vinha em palavras mas vinha em olhares debatia áspera nas feições de escárnio dos outros funcionários. Era fácil ler aqueles olhos de pupilas gordas e também as íris. E lá ia Diogo ascender glorioso no palanque dos chatos! E acendia um cigarro e outro. Como bom observador, acabava atuando para evitar atritos – e eis um ponto crucial de sua personalidade, essa coisa de evitar atritos. Então, desenhava um sorriso de complacência. De forte metido a fraco que treme de medo da própria força. E fumava...
Não era dos mais modernos. Tinha um carrinho simples. Gostava mesmo é de andar. Ia caminhando para a empresa, nem tão próxima nem tão distante de onde morava. Mesmo nos dias chuvosos. Mesmo nos dias de tempestade. Até mesmo nos dias de folga. Aos passos largos de quem constrói altar para a pontualidade, lia as placas de carro em busca de algum sentido. Lia ao contrário o nome das lojas, os títulos das músicas. Quando encontrava alguma informação escondida, deleitava-se numa diversão infantil e triste. Aquela tristeza amarga de quem não tem a quem compartilhar. E da solidão brota o materialismo funesto dos pobres. Suas gavetas de madeira cara obedeciam a uma lógica fácil e inalienável. Livros pelo tamanho e discos pela ordem alfabética. Remédios – os intocados e intocáveis remédios – dum lado, as fotos de parentes longínquos noutro. Sempre limpas: aquelas gavetas escondidas nos poucos móveis que guarneciam o quarto ao fundo do modesto apartamento. No fundo de si ardia lasciva a saudade. Saudade de algo que nunca viveu – sua amiga, a frustração. A única.
Mas pra reconstruir aquele encontro, aquela obra megalomaníaca do acaso que unira as duas almas díspares, cabe entender alguns retalhos na cortina vermelha que esconde a peça.
Sobre seus ódios e medos. Entre tudo o que odiava e mais que tudo, estavam os erros. Os de qualquer espécie. De qualquer dimensão. E mais ainda dos conformados: de gente que se faz de orgulhosa por errar e revelar o podre. Como se pudesse servir de álibi. Os ourives não aceitam falhas. Eles lapidam, incansavelmente. E eis que um dia, desses bem típicos a princípio, bem rotineiros, Diogo se torna algoz da condição humana a qual procurava evasão. E erra, grotesco. Na sala de estar, a lisura rósea das paredes exibia apenas uma mácula - um prego que sustentava um calendário de padaria. E mesmo assim esquecera do aniversário da mãe. Data assiduamente santificada na família. Lembrou-se na tarde agora atípica, num supetão enraivecido que o fez sacudir violentamente a xícara de chá. Bem que eu achei estranho ela não ligar nos últimos dias! pensou, imaginando formas de se redimir. Fantasiou mentiras. Ensaiou a mansidão da fala e os votos de boa fé, os exauridos. Inútil: alguns erros são simplesmente imperdoáveis. Melhor seria não tentar. Juntou as pálpebras com os dedos, levando a outra mão ao bolso e desligando o celular. E naquele silêncio nasceu o temor. O prurido na consciência. E na garganta uma nódoa viscosa. Não seria capaz de enfrentar aquelas chantagens. A velha aludiria a uma emotividade típica de quem está pra morrer. Não estava munido de paciência. Uma mistura de tédio e medo o invadia. Talvez a mãe também o xingasse. Em marteladas ferozes na casca rija do caráter que ele polia no suor. Não suportava rachaduras. Era essa sua coisa de evitar atritos.
Brilhou a lâmpada das ideias: precisava de férias! Talvez não. A verdade é que não. Mas se convenceu disso. Embora não sentisse fadiga, tinha motivos para senti-la. Ora, já se passara quanto tempo desde o último descanso prolongado? Dois anos? Três? Não sabia. E como bom funcionário, direito tinha. Tiraria uma semana. Excitação e euforia se introjetaram naquelas artérias e veias sobressalentes. De um lado para o outro, entre cigarros e fumaça e brasa e cinzeiros e cigarros, esquecera da velha. E dos velhos recentes tempos: do Diogo com postura de velho, jeito de velho, rosto de velho. Mas enfim encontrou a palavra. Almejava no âmago, talvez sem saber, uma metamorfose - e que fosse completa. Que o completasse. Que o transformasse. Uma verdadeira combustão na alma. Pronto. Traduziu o rebuliço e se acalmou.
Dois dias depois comunicou ao chefe e tirou licença. Voltou caminhando. No ensejo da reforma íntima, começou uma luta voraz contra os próprios símbolos. Os símbolos criados por uma personalidade que ele queria abandonar. O perfil certinho, perfeito, polido, prolixo, mas sempre mal interpretado de outrora: nunca mais! Brindou o egoísmo, o politicamente incorreto. Começou então por ignorar as placas e os letreiros. Mudou o passo, agora numa lentidão de quem não tem compromissos. E não tinha, e se regozijava gargalhando alto. Fez promessas de libertinagem com pecados e futilidades. Coerente, afinal, enterrava ali o fardo de joalheiro de si mesmo.
Mas o mundo... O mundo não parecia diferente. Aquele cinza que manchava a paisagem urbana persistia. Tudo era cinza e de concreto, e permanecia. E os folhetos espiralando no vento que alertava o nascer da noite, naquele zumbido fúnebre. Junto com o zumbido dos carros. E as buzinas com sua impaciência retinindo no mármore de qualquer lugar pra qualquer lugar, em qualquer lugar. Ninguém notava aquela metamorfose, como costumam notar nas borboletas. O mundo não parou de girar. Meu fado é não ser notado? perguntou-se em represália.
O mundo resolveu dar uma trégua.
E enfim, configurando o que seria então o cenário principal de sua trama de existência, eclodiu de súbito um estampido metálico ensurdecedor. Num arco reflexo, protegeu a face nas palmas das mãos e curvou a cabeça. Quando do silêncio borbulharam os murmurinhos excitados, voltou-se para a rua. Um corpo esticado, num banho de sangue. Acidente de moto. Com vísceras à mostra e muita gente olhando. Ninguém agindo. Mergulhou num suspiro demorado, que lhe escapava tímido pela boca e pelo nariz. A verdade era que não se importava. E que se danasse as regras de boa conduta! Ainda não se importava, nunca se importou. Deu de ombros e deu as costas. Mas não completamente, pois aqueles olhos de tâmara o impediram de completar o giro de calcanhar. Aqueles olhos de tâmara...
Aqueles olhinhos comprimidos em pílulas. Compactos, atentos e estáticos. E seus cabelos, os longos, muito longos, eram os únicos da multidão que se debatiam loucamente contra o vento. Desesperados, alucinados. E lhe beijavam a boca, vibravam no ar, giravam vigiando a nuca e depois precipitavam em cascata sobre os ombros delgados. Segurou-os, agora cativos. Mas ainda na sacudidela. Pulso firme. Diogo, dez passos distante, fulminou-a. Seu corpo se eriçava em uníssono. Ele todo. Não que a silhueta fosse das mais belas. Não era. Viu sardas, pintinhas, cravos, saliências. Também a gordura envergonhada em pontos localizados. Notou a forma como tampava os lábios com a mão... Como se tivesse medo do animal humano. Que mulher diferente! Tinha algo de pura, calma, tímida. Ou somente calma. A verdade é que ela pareceu perceber o fuzilamento visual e retribuiu. Com seus olhos de tâmara. Libertou os cabelos estonteados, em molas. Afrouxou o pulso. Sorriu.
Naquele instante, naquele exato instante, se existe alguém sentado num trono manipulando essas gracinhas do acaso, esse alguém se empertigou. Olhou altivo. Resolveu se divertir. Bancar o ventríloquo. Senão, o mundo resolveu dar uma trégua ao infeliz Diogo, impulsionando-o na quebra dos próprios símbolos. Outra hipótese é que tudo não passa de coincidências, efêmeras e casuais. Como a vida. O fato é que eles se atraíram, como os pólos opostos de um imã. Ela, com as mãos mergulhadas nos bolsos de uma bermuda branca, não se moveu. Ele o fez pelos dois. Foi, sem delongas. Ele, outrora desprovido de qualquer impulsividade.
Começou com o pretexto da preocupação, o falso pretexto. Perguntou o motivo de tanta palidez, se precisava de água, de carona, de qualquer coisa. Ela negou tudo, de menos a conversa fática. Era o seu tom de pele natural! Exibia os dentes grandes. Meio alienada, flutuando no diálogo. Tentou ir mais fundo, perguntou o nome da moça, que lhe parecia poucos anos mais nova. Quatro, no máximo. Me chamo Anita, respondeu, adocicando a voz. Prazer, o meu é Diogo. Prazer. Não houve contato físico.
E os carros com suas buzinas. A cidade e o seu cinza. Os folhetos e suas mensagens aleatórias rodopiando aqui e ali. O aglutinado se dissolvia. A ambulância chegou e foi. Acabou a festa. E só restaram os dois, no meio da calçada. Envoltos numa esfera de silêncio. Ele fingia esperar algo, ou alguém, enquanto pensava no que dizer. Ela ainda parecia flutuar, como se visse cores e alegria naquele centro urbano. Foi então que um punhado de gelo se derramou no estômago de Diogo. Essa é uma oportunidade única, não posso deixar escapar! Preciso pensar em algo pra falar. Rápido Diogo. Rápido, rápido! Anita se curvou ao relógio. O silêncio então se ceifou quando o homem, numa postura de quem já não tem mais nada a perder, abriu a tampa dos receios e limites e ferveu as ideias antes submersas no âmago. Embora sempre vivas. Amanhã estou indo viajar, vou pra Búzios. Quer vir? as palavras atropelaram umas as outras. Quis fechar os olhos.
Tá doido? Não tenho dinheiro! Nadinha nadinha, em risinhos, mostrando o avesso dos bolsos. Realmente vazios. Uma brecha... Encontrou a fresta e foi, sem olhar pra trás. Eu pago tudo, não se preocupe! Vamos de carro e vai ser tudo tranquilo, assegurou, sem pensar muito. Búzios tinha sido o primeiro lugar que viera na mente. Teria que pesquisar o caminho. Impulsos. Impulsos encarcerados ao longo de toda uma vida. Ajustou os óculos na base do nariz. E viu, pelas lentes de vidro grosso, os olhos de tâmara se esvaziarem. E germinaram olhos de damasco, faiscantes. De fogo, brasa vermelha. E crepitava. Queimando na órbita. Digeriu as informações em poucos segundo. Enfim, escapuliu um gritinho de excitação, meio débil: então eu aceito! Despediram-se com meros arqueares de sobrancelhas e ela pediu para que a esperasse ali, no dia seguinte. Ele concordou. E partiu. Sem toques. Lembrou-se de sorrir, ao vê-la diminuindo no horizonte vertical.
Destrancou as portas do singelo apartamento com certo receio. Sem saber de que. Com firulas em meu próprio lar? murmurou para si. Uma pequena abertura na janela revelou a lua. A lua e sua benção de prata. Por segundos, pôs-se a admirar as nuvens convergindo para a iluminação. E os segundos convergiram em minutos. E as nuvens convergiram até se fundirem em trevas. E depois eram apenas nuvens. Uma lufada gélida adormeceu-lhe a face, com o sopro inebriante da noite. Assustou-se, num calafrio exagerado. As mãos em concha em frente à boca. Baforadas quentes... Foi à cozinha. O coração zumbindo, a pulsação rente ao pé da orelha. Havia algo naquele silêncio que o irritava. Como se fosse espiado, condenado, julgado pelas paredes anormalmente quietas. Aquele silêncio anormalmente doloroso. Esqueceu-se da fome e se jogou no divã da sala de estar. Conferiu o celular: nada. Procurou afastar resquícios de saudade da mãe, de altruísmo e culpa. Um toque de dor no peito. Encolheu-se. Se a dor fosse a consequência daquele caminho, estava disposto a enfrentá-la. Disposto a vencê-la, fazer dela cicatriz. E entre os pululantes pensamentos que circundavam o vazio daquele cataclismo interior, dormiu. E depois acordou. E enfim dormiu.
Antes permanecesse dormindo, e dormindo pra sempre. Pois aquela realidade tão bizarra precisava ser mantida; cada minuto de hora, prolongado; a ilusão, alimentada. Diogo se mergulhava, pela primeira vez, na vibração de um calor interno que nunca degustara. Nada fazia muito sentido, e mesmo assim fremia a cada sensação nova. Movido por esse desespero fulminante de quem se despe de uma personalidade que passara a sufocar, rompeu os grilhões da lógica e da boa fé. Pelo menos em sonhos. Bastou um toque num botão para gerar um titilar nunca tão áspero. Que o acordou, que o colocou de pé no resvalar da manhã. E mais que isso: que o fez emergir daquele poço de fantasias. E revestir-se e enraizar-se definitivamente nas vestimentas de outrora. A campainha.
Meu filho! Que saudades! Desculpa te acordar, mas vim de tão longe pra te ver... Só faltou você lá no sítio no dia do meu aniversário. Mas não vou te xingar, tá? Sei que você não gosta... Meu Deus! Que aparência é essa, meu querido? Parece tão pálido. Vem, me dá um abraço. Hum... Como senti sua falta! Vamos, sente-se aqui: me conta como vão as coisas na firma, nos seus namoricos...
E correspondeu a cada palavra com sorrisos sinceros e afagos verdadeiros. E isso o corroia. Vergonha inata aos covardes. Procurava não imaginar aquela moça esperando-o. Curvando-se ao relógio: os cabelos debatendo-se freneticamente. Levaria muitas coisas para a viagem? Muitas malas? Fingiu duvidar que ela apareceria, e convenceu-se. E entre os atritos tantos que já evitara, eis o maior. E se tentasse relembrar sua aparência, só lhe viria uma neblina disforme, e aqueles olhos... Ora de tâmara, ora de damasco. Anita! Num suspiro de derrota consentida, olhou para aquelas memórias como um adulto vê, resignado, as peripécias de uma criança. O espírito revoltoso de um jovem. Arrastando-se, assim viveu, entre encontros e tarefas e correções e críticas e futilidades e formalidades e cigarros e lágrimas, lágrimas, lágrimas.
A mesma abertura na janela. O sol a pino, a benção de ouro. Havia luz para todos. E as nuvens, ainda assim, eram somente nuvens. Nada mais.