Pouco se poderia dizer sobre aquela pequena silhueta. Nada mais que uma pequena silhueta. Crianças: ou são agitadas ou quietas. Bonitas ou bonitinhas. Choram ou não. João Paulo ascendia glorioso em seus cinco anos sem muitas lágrimas, resignado sempre e de traços retos. Já masculinizados.
Mas onde estava o cerne de sua beleza? A fonte era desconhecida... Pois quem o olhava via-se diante de uma presença que era só presença. E só. Contemplava um olhar enevoado que nada focava, mesmo encarando todos que se colocavam diante de si com uma austeridade infantil que não divertia a ninguém - amedrontava. E os sorrisos que pareciam ensaiados, as gargalhadas entrecortadas tão sociais. Assistia aos seus desenhos como que por obrigação, com as mãos repousando nos joelhos. O volume sempre baixo.
Pois entre tudo que seus sentidos sorveram até os completos cinco anos, o silêncio era o que mais o agradava. Acalentava de modo a fazê-lo invejar os surdos. Não precisava de vozes ou de sons, nem mesmo do atrito áspero do ar abandonando as narinas. Necessitava apenas de ouvir, ver, tatear, aspirar e engolir o silêncio e ser engolido por ele.
Os vizinhos poucas vezes o viam com a mãe. Não sabiam se ali morava um pai. A mulher de poucos amigos saía cedo, altaneira. De vaidade escarlate. Os cabelos soltos em ondas vermelhas. E o quadril ondulava pelas ruas, indo. E vindo - só se já era início de noite. Então descobriram que João passava muito tempo sozinho. E da perplexidade do que muitos considerariam abandono, nascia uma maior e corrosiva: nada mais o garoto fazia, senão se colocar no sofá, com as mãos deitadas, simétricas e paralisadas, sobre os joelhos delgados que procuravam crescer para atingir o assoalho. E nada ele parecia esconder, nada parecia se deteriorar em sua realidade solitária. Apenas uma presença, um ponto no universo. Que os vizinhos espreitavam pela única janela que recortava a sala de estar.
Notaram que a mãe engordara, os mesmos curiosos. João Paulo sorriu complacente ao ver o irmão, pouco familiar, ocupando o berço que outrora fora seu. E em semanas a mulher galgava novamente pelas ruas.
No decoro da boa conduta, ofereciam ajuda para mimar o recém nascido. O primogênito arqueava o cenho em agradecimento. Mas recusava qualquer oferta, fechando a porta aberta sempre em ângulos rasos. O bebê chorava alto, espavorido, estridente, agudo, até que o início da noite então chegava. João Paulo entendia: era a ausência da mãe.
Noutra tarde o caçula berrava como costumeiro. Pela janela quadrada uma senhora mais curiosa que as outras sentia o coração titubear ao sentir a imensidão do vazio daquela silhueta pétrea que parecia flutuar no divã. Os soluços agonizantes que engasgavam o recém nascido de minutos em minutos não pareciam exercer nele um frêmito sequer de reação. Mas dentro do garoto as coisas eram diferentes. Tudo queimava, tudo era fogo. Tudo doía e encarcerava e corroia e dilacerava sua paz silenciosa! Crispou os lábios ao perceber que era vigiado. Agora já alcançava o firmamento. A mulher não suportou o olhar etéreo da criança e se foi. Mesmo assim, João Paulo tampou as janelas com as cortinas brancas. E foi até a cozinha. Pegou alguns brancos guardanapos. E se dirigiu ao quarto do irmão.
Entrou a passos calmos. E aquele som que reverberava em cada quina de parede parecia cortar-lhe a pele, ceifar-lhe o espírito. Mas não exibia um gemido de dor. Sequer um suspiro. Passos calmos o levaram até o berço. Já era alto o suficiente para um olhar imperioso, que encontrava o bebê como um raio que despenca em terra virgem. E ele ainda chorava. A boca fatalmente aberta. Bem diante de si, ali, encarando-o. O seu maior e único algoz.
A boca de onde toda aquela torrente de notas destoantes invadia-lhe os ouvidos sem autorização. A boca de lábios encharcados do caldo de saliva e lágrimas. A boca que tampou sem hesitar, com os guardanapos que empunhava. Pressionou-os com uma força que não sabia ser detentor. Que nascera de todo aquele cárcere em que sua alma se alojava. Da chama que o consumia e que fazia dele sua própria pólvora e cinzas. Os olhos da criança vibraram nas órbitas. E depois ficaram estáticos. Retirou-se sobre os mesmos passos calmos.
E enfim foi engolido pelo silêncio novamente. E para sempre.
O bom desse conto da pra ser lido fora da primeira parte. É ate uma experiencia legal nesse caso, ler esse antes!
ResponderExcluirq imaginaçao
ResponderExcluirsufocar a criança com guardanapos!
ótimo conto!!!!
muito bem escrito como sempre!
parabens!
Choquei D:
ResponderExcluirMais um achado! Parabéns!
ResponderExcluirAh e obrigado pelo comentário! lol
Muito bom!
ResponderExcluirFiquei imaginando cada cena,
cada sentimento
e depois,
o silêncio...
... o que me fez lembrar de Guimarães Rosa. O que me faz te admirar ainda mais.
ResponderExcluirAs imagens vão se formando, naturalmente, na cabeça do leitor.
Parabéns!
Abraço.
Guizão, melhorando cada vez mais.
ResponderExcluirótimo ótimo. Me identifiquei um pouco com João Paulo rs
Parabéns, amigo!
Mto bom Gui!
ResponderExcluirEsses dois contos prenderam mto a minha atenção..
Final inusitado no primeiro, embora nesse eu ja imaginava o que aconteceria rs
Continue assim mano ! Ansioso pelo próximo conto..
nossa, que forte. que delícia q foi ler essa sua força toda. obrigada por isso.
ResponderExcluireu fiquei completamente presa na sua narrativa,
ResponderExcluirvolto aqui, fato...
Gostei do seu blog e estou te seguindo, depois dá um pulo lá no meu,ok?
ResponderExcluirflw!
Silêncio! Eis ai minha paixão. Silêncio.
ResponderExcluirDemorei para vir ler, mais aqui estou e cada dia admirando mais o teu trabalho!
Parabéns!
Gentsh, Gui esse Conto pra mim foi o melhor de todos.
ResponderExcluirEsse com certeza você se superou.
Cada dia que passa seus contos ficam melhores.
Parabêns. (Desculpe a demora, mas consegui ler)
Muito bom.
Beijo Beijo
Uia, forte o fim deste momento...
ResponderExcluirFique com Deus, menino Guilherme Navarro.
Um abraço.