- É... – e dois extensos segundos se passaram – acho que nosso lugar no inferno está garantido!
E foi dobrando e dobrando e dobrando até que o guardanapo tornou-se um pequeno quadradinho. Guardou no bolso da jaqueta. A mulher, que seguia o papel se diminuindo nas mãos de cera do homem, não sorriu. Como se nem ao menos tivesse ouvido o que João Paulo dissera. No entanto, ouviu para muito além do ouvido. Retiniu no crânio e borbulhou na mente. E questionou-se sobre inferno, coisa que nunca fizera em vida. Era coisa pra mortos se preocuparem - seu costumeiro ideário. Mas o inferno lhe pareceu tão convidativo! Nele, os pecadores não a mirariam com olhos de julgamento. Com aquela expressão de sobrancelhas mortas e lábios crispados em meia lua que tanto odiava. A piedade estampada nas feições... Afinal, seriam pecadores como ela! Ou, se olhassem de um jeito pedante, ela também poderia fazê-lo. E fez, para a mesa que viu na sua frente, imersa em suas conjecturas fantasiosas. Naquele instante o inferno configurou-se como talvez a única expressão de liberdade que ela poderia sorver. Porém, não pensou em morte.
- Acho que você precisa de cigarros... – murmurou para si, derramando um maço inteiro diante de Gabriela – Fume e diga alguma coisa, moça.
Havia mais tempo. Ele lhe dera mais tempo. Sem cerimônia, fumou a tragadas fortes. Permitiu-se contemplar a paisagem que bordava pequenas linhas vermelhas e costurava o céu, ainda lutando para fortalecer o tom azul tão prematuro. Mais um dia e ela nem dormira. Alguém encerrou a música que se repetira durante horas nos fundos do bar. Uma gorda surgiu, quebrando a dualidade daquele cenário. Lavava pratos sujos sem muita paciência, o rosto carrancudo. O som da água arranhando a louça era a nova sinfonia daquela cena.
- Não tenho o que dizer. – pontificou, com a voz impregnada de uma rouquidão áspera que nem ela mesma se sabia detentora.
- Conte-me sobre como isso tudo ocorreu, então...
A gorda rangia os dentes. Dois barulhos: os dentes e a água. Os dentes e a água... A torrente alternava a vazão numa lógica incompreensível. Gabriela pôs-se a fitar a torneira enferrujada. Como queria um banho! Pensou que talvez pudesse ser como uma daquelas louças. Que debaixo da água, despida de quaisquer pudores acerca de suas máculas, pudesse se purificar. E que a exibição das tantas feridas fosse, em suma, a penitência que a limpeza exigiria. Mas ela teria que lavar a si e a outros. Pois pecados não acinzentam a alma apenas do pecador. Há a vítima. Vítimas. Vítimas que já se foram e que então não poderiam ser simplesmente lavadas numa água sacra. Que glosa ingênua, a que perpassara seus pensamentos... Elas estariam no inferno, essas vítimas? Voltou a caricaturar o inferno. Só conseguia pensar em fogo e cinzas. Desconhecia o cheiro de enxofre... E a simples ideia que ela ouvia no subconsciente fugia por todas as quinas da consciência. Ela não queria pensar. Não queria enfrentar. Uma pergunta que ela nunca poderia se fazer: teria mandado dois filhos para o inferno? E antes de concluir já imaginou um acervo de respostas. Não! Claro que não! Eram apenas fetos, o que poderiam ter feito para merecer o inferno? A voz da mãe ao pé do ouvido: quem suicida, quem nega a vida e a benção de Deus, tem um destino muito claro...
- Mas fui eu quem os matei! – vociferou de imediato, afundando as mãos nos cabelos curtos em impaciência.
A gorda olhou de soslaio. Nem uma nesga de reação - provavelmente não ouvira com detalhes. João Paulo pareceu interessado naquele torpor eufórico, mas ainda assim sorria. O cenho franzido. Gabriela se deteve naqueles dentes pontiagudos... De cobra. E aquela brancura lhe pareceu diabólica. E voltou a desconfiar com o fastio de sanidade que lhe invadia. Não se lembrava direito como aquele indivíduo surgira há algumas horas atrás, tampouco no que o fizera sentar-se ali, tão próximo em sua distância. Ele estava sorrindo. Estático. O casaco de couro curtido era entrecortado por feixes de luz matutina. Havia algo nele de atraente. Porém perigoso: e talvez atraente por isso. Uma identificação entre duas almas corrompidas e malignas. Que mesclava no mesmo caldo sujo pecados inconfessáveis já confessados. Um líquido de que ela poderia embebedar-se e banhar-se e afogar-se sem medo. A purificação pelo avesso. Pois ele deu a ela algo que ninguém jamais ousou. Tempo. Pela primeira vez Gabriela olhava os ponteiros do relógio na parede sem sentir aquela dor inexplicável que ceifava seu peito. E lacerava seus dias com as lágrimas tantas. Não sentia fome ou sede. Senão a fome de liberdade e a sede por misericórdia. Os ponteiros revelavam a iminência de algum juízo final o qual ela não poderia ser submetida. Ali, naquele vórtice ilusório, sentia tranquilidade. E uma vergonha incipiente. Já que ele estava bem ali, o dono de seu tempo, e ela respondia somente com silêncio – sem saber que esse mesmo silêncio era sua maior paixão.
- Podíamos sair daqui. – e apontou para a gorda com uma leve inclinação de cabeça - Não falarei o que houve nesse lugar. – desdenhou, retomando a vivacidade do rosto e dos lábios já fendidos de secura.
- Por mim tudo bem. Eu estou de moto, posso levá-la onde quiser.
- Vamos para a minha casa.
Ele acenou, agora mais sério. Ela, em síncope. Pela primeira vez se fez vítima de um olhar tão penetrante. E cogitou cenas. E só cogitar doía. Sua cama estaria arrumada? O homem colocou-se de pé e pareceu-lhe muito mais corpulento. A feminilidade em ebulição. Fervilhava a garganta.
- Não tem problemas com moto? – um roto cortejo?
- Nenhum – uma talvez mentira.
- Vou buscar a moto e espero em frente o bar, então.
Gabriela concordou. Quando a silhueta de João Paulo sumiu nos corredores, a mulher pôs-se a catar cada cigarro da mesa e afundá-los em sua bolsa com a gesticulação própria de um esfomeado. Aprumou o busto, retocou com cuidado o batom carmesim no vidro embaçado e ensaiou algumas palavras incisivas. Uma risadinha de impaciência consigo mesma. Quando enfim levantou, notou que o companheiro esquecera uma pochete no banco em que estava acomodado. O zíper entreaberto a impediu de ignorar: um revólver.
Pegou a pochete e foi. Como uma ratazana à caça.
Excepcionalll!!!
ResponderExcluirque conto eh esse ein?
ResponderExcluirentrou pra minha lista de contos preferidos q vc escreveu.
uma trama realmente mto bem desenvolvida e estruturada. excelente!
o modo como no meio de uma conversa entre os personagens vc consegue ao mesmo tempo coordenar outras açoes de fundo para moldar o cenario e a situaçao ainda me deixam surpresa. como tudo eh tao harmonico!?
vc tem o dom da escrita!
meus parabens!
E aí, Naravo, beleza? Bom, não tô conseguindo ler seu texto nesse momento, estou no trabalho e minha atenção é igual a do Bentinho da Capitu.
ResponderExcluirPelos comentários, parece-me muitíssimo interessante seu blog.
Valeu pelo comentário no meu, abraço e até logo.
Toda vez fico sem palavras...
ResponderExcluirCaramba!! Que foda Gui !
ResponderExcluirSuas narrativas são impressionantes !
Cara, quem pe realmente santo e quem é realmente pecador neste mundo semi perdido em palavras e gestos?
ResponderExcluirFique com Deus, menino Guilherme Navarro.
Um abraço.
Escreva, moço, escreva.
ResponderExcluirNossa, Guilherme, surpreendente.
ResponderExcluirMente incrível a sua.
meu beijo
Me toca de uma maneira incrível
ResponderExcluirE me inspira de uma maneira única.
Obrigado.
Guilherme, e eu tbm estava com saudade de vc, e de passar aqui!
ResponderExcluirAhhh, esse tempo que as vezes mata a gente né?
Qto ao seu texto, pelamordedeussssssss...como vc escreve lindamente meu querido.
PS: Parecem coisas tão reais!!
Um beijooooooo meu!
isso é BOM
ResponderExcluirbem interessante a sua escrita, gostei bicho!
ResponderExcluirquando puder visita lá, parecerias também estamos aí!
http://lexicosandcharutos.blogspot.com/
Olá por alguns motivos estarei deletando meu atual blog, mais já estou construindo outro espaço para postar idéias, pensamentos e imagens.
ResponderExcluirGostaria de ter sua presença neste blog tambem:
http://tatapalavrasaovento.blogspot.com/
Beijos com carinho!!
Você é genial e eu te invejo, só isso
ResponderExcluirCara, você mandou bem, porém eu não te invejo. [sorrio]. Admiro. [sorrio novamente]
ResponderExcluirParabéns e continue escrevendo
Me indicaram o seu blog e eu vim conferir
http://jefhcardoso.blogspot.com
que bom que é te ler :)
ResponderExcluirFortíssimo..."agreste"...
ResponderExcluire imagem perfeita...
beijos e bom domingo,
Bia
Passando para conferir nova postagem.
ResponderExcluir*Entre o sonho e a realidade eu prefiro a realidade que me permita sonhar. http://jefhcardoso.blogspot.com
Saudade dos seus textos, Guilherme!
ResponderExcluirGrande abraço!!!!!!!!!
que isso... bom demais da conta...
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