Quando me olho num reflexo qualquer: sou um campo sem
limites, mas há uma árvore-arranha-céu, de folhas exuberantes e discoides,
ervas primitivas se erguendo em filetes caracóis parasitando toda a casca velha
e viva que faz chuva no solo, solo que pouco importa. Importa é que, tamanha a
árvore que sou, quando tolda sobre mim o sol do amor, não faz diferença se me
bate um vento forte ou fraco, a sombra é sempre grande, a sombra é chão, a
sombra é morte, assoalho, firmamento e forma etérea mais concreta que nós dois.
De forma que, quando o vejo com o abrasivo olhar do amor, sem
delongas moverei dentro de mim aranhas abissais. Teias com os átomos de poeiras
do passado: cicatrizes sensíveis, gritos reprimidos no silêncio onde o orgulho
dorme, esse túmulo frio que é a boca que te beija. Cada segundo que você
desprende decifrando meus rompantes e contradições será o suficiente para que
eu remonte todo o vitral de sacra igreja. Não se engane, nada nessas
engrenagens respeita meus intentos nem a lógica já pouca dos apaixonados. Vem
tudo de uma natureza que é tão provinda do âmago quanto o comer e beber e
transar. E eu sinto, ah! Como sinto! Mas mesmo que recaia sobre mim a
eletricidade toda de uma tempestade, quando me tocas ou quando sua voz arrepia
a base do meu ouvido cansado, ainda serei a árvore flutuando no oceano de
sombra. A treva é mais estável que essas piscadelas de luz, é ela que me olha
quando fecho os olhos para te ver.
Vou te empurrar, na medida e na frequência com a qual se aproximas. Enquanto
quiser saber meus maiores infortúnios, traumas, paradoxos... Enquanto quiser entender
ou até remodelar essas pontas falhas, irei te amar, regozijar-me pela
preocupação e o mimo. Mas serei fera. Não posso permitir que você me compreenda,
pois preciso da ideia estúpida da singularidade para manter raízes vivas, ainda
que flutuantes. Estúpida, portanto execrável, porque sou pouco e esses lampejos
altruístas em que lhe admito isso são lampejos e tão logo já dito, se foram.
Serei capaz de atrocidades inimagináveis, serei a predadora fria que te expurga
pelos menores dizeres mesmo sendo você o pavimento e obreiro da minha estrada. De
tanto fingir de esquecer, esqueço sacrifícios e pormenores carinhosos. O amor
arguto que sinto quando diz que me ama, sol, é também o ódio que me inunda
quando o vejo assim tão perto da zona escura, sombra. Não é tão simples, não
são opostos, esses dois. São a mesma coisa, ao mesmo tempo, vindos do mesmo
substrato. Amar implica em odiar na equação em que nasci. Não posso deixar que
se aprofunde demais no mar de mim, são verdadeiras trevas! Cravarei as já ditas
raízes nas suas pernas e te tirarei dali, vangloriando-me de ser sua salvadora,
mas também torcendo para que se afogue novamente, com um meio esgar azedo no
meu lábio comprimido. Preciso mantê-lo numa posição que me conforte, mas também
me desconforta se não houver certo tipo de movimento. Acho que isso é
intrínseco a todos nós.
Desista de mim. E entenda isso não apenas no tocante ao
relacionamento: eu preciso que você desista para que eu avance. Que você desista para que eu vença. Que desista para eu travar minha própria luta. Pois só poderei lhe
devolver sorrisos se você permanecer boiando, contente apenas com a lâmina-superfície,
meros reflexos de água, balaustrados respingos nos seus lábios secos. Despreocupado
transeunte transitório. O desmazelo é o que me mantém perto. Quando eu vier até
você espavorida, claudicando, vociferando entredentes firulas quaisquer que eu
insisto em transformar em monstros - sorria, concorde sempre, mas não os enfrente. Seria
o mesmo que enfrentar a mim, que sou monstros, de tão machucada. Mas com essas duas lentes finas que você usa, desejo puro e intenções tenras, sei que não é capaz
de atender a esse pedido. Nunca será o viajante tranquilo na canoa despreocupada que meramente passa por
mim.
Então apenas desista.
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Texto inspirado em Herb Primitive, por Raine Holtz.
Mais em: Through Waves
Uou.
ResponderExcluirO texto tem uma história tão crescente que meus olhos foram arregalando conforme chegava ao final. Que intensidade!
O primeiro e o segundo parágrafos foram complicados de entender, porque, quem diria que eles puxariam um assunto tão denso quanto esse? Não sei nem definir exatamente o que acontece, mas saiba que entendi perfeitamente, tive sensações muito sólidas e como todos os seus textos, me identifiquei (ao menos um pouco). Sempre me admiro com a sua percepção pra algo tão indefinível que é a mente humana. É como se eu percebesse vários aspectos da vida que estavam subentendido.
A-M-E-I como você conseguiu relacionar amor x ódio (o que poucas vezes fez sentido pra mim). Ficou claro, ficou pesado e por isso ficou tão bom. E você usou e abusou de paradoxos - o que eu sinceramente não consigo fazer em nada, de tão complicado que acho. Tá incrível esse texto. Dos mais sombrios e humanos que você já fez.
Agora, mais do que nunca, me deu muita vontade de ler algum livro seu.
Amo sua escrita e adoro como você está sempre se superando dentro do seu próprio estilo.