O meu luto são esses olhos bem abertos, que piscam vagarosos como a lua em sua derradeira insônia. Lentamente, os cílios se beijam e tão logo se odeiam. Não há convite para lágrimas trilharem o abismo do rosto, não querem passar pelas cicatrizes invisíveis cravejadas nesses ângulos. Porque todas as fontes que deságuam nesse interior, e no interior do interior, foram bulidas ao ínfimo espaço que preenche o vapor quente que sai da minha boca e embaça o vidro do relógio. O líquido para me lavar já não existe. E também cessaram os gritos, os punhos fechados desferidos na parede nua a me presentear com escaras e cascas, tão menos dolorosas. A violência, avesso do âmago, também é o avesso da ventura: está ali, derrotada, sem energia para o giro das engrenagens. Então vocifero os maiores insultos para os outros, e para os amigos dos outros e amores dos outros (meus personagens); no entanto, sou o único e solitário ouvinte. Apenas meus ouvidos restaram para o clamor cansado da minha voz. Imagino suas faces estupefatas diante da verborragia lapidada em ofensas pontuais e consigo lá no fundo de qualquer canto sentir o tênue gosto ácido da vingança tardia. Mas no fundo, sou o único ouvinte, e ponteiros me dizem para dormir. Não. Os medicamentos tantos repousam nas caixas vazias em gavetas escancaradas. É essa pupila dilatada na madrugada quente que se vê no espelho. Um grande círculo preto, minha porta para o mundo. Culpada, portanto. E no fim não se reconhece, entre tantos traços mutáveis do animal-semente que foi descascado até se descarnar a vaidade. O homem que se projeta diante de uma estrada com os pés descalços, fantasiando futuros altaneiros; e sente a terra, sente o vento de todas as estações, mas a natureza não lhe pertence e não o deseja. A natureza é a incógnita que me repele, é uma intrusa. A subtração de mim, o universo menos eu. O meu luto são sombras numa rosa que engolem as trevas, sombras independentes da luz. Mais escuras que as trevas. E quantas sombras uma rosa pode ter? Sobretudo uma rosa condenada a perder suas pétalas todos os dias, todas as noites, forrando o assoalho com uma serrapilheira de podridão na qual se alicerça. Assim vão se desfalecendo suas raízes e caule, mas os espinhos se tocam e se ferem continuamente numa espiral de dor. Meu luto, salvaguarda primordial! São figuras transitórias entre o pavor da solidão e a tenra piedade, piedade própria, que sobrevive até mais que a esperança. A companheira final, que constrói esse cárcere invisível. Lúgubre silêncio que se come, que se cospe, que se devora a cada dia num martírio penoso e voluntário que me faz caminhar sem rumo em ziguezagues na tábua corrida, estreita. Casa pequena, essa alma pequena. E eu aqui, maestro da sinfonia com os rangeres pra lá da meia-noite. Tudo goteja e não sei onde, a madeira dilata em estalares sem ritmo e contrai em rachaduras, o coração tépido bombeia a essência que não aceito de bom grado. O luto se eterniza louvando memórias de passados felizes, costurando-as a outras memórias de passados inventados num caleidoscópio que só pode ganhar vida através da arte. A arte me engana e me reinventa, acalenta – preciso, pois não há outros olhos para se apiedarem. A verdade imiscuída nas lembranças doentias, onde? Espero que muito, muito distante. O telefone dorme, mesmo que eu o fite durante todo o tempo. Das janelas não chovem palavras (mas eu trovejo), tampouco os joelhos dobrados em súplicas de perdão imensurável. E das portas não entram arrependimentos nem cartas nem beijos muito menos presentes de aniversário. Vou me dissolvendo no nada, como a poeira que viaja nos dedos de luz da manhã, sendo sugada pelo lençol amarrotado nessa cama quase túmulo até o fim do nó, coleira e sufoco. Então surge aquela pergunta abissal, que coça gânglios nervosos. Aquela pergunta...
Muito bom gui! Parece até q foi pra mim, q custo a dormir.
ResponderExcluirAmei! Esses contos que correm pela madrugada (feitos nela ou que se passam nela) são sempre carregados de uma reflexão tão verdadeira! Sentimentos e pensamentos que se revolvem neles mesmos, se ajuntam no ardor de se manifestar e correm assim, fortes, profundos, cheios de um desespero que inunda tudo quando lemos. Essa é a palavra: inundação. E é ótimo sentir as palavras preenchendo nossas lacunas. (:
ResponderExcluirÉ bom ir lendo e encontrando frases que parecem uma leitura mais próxima do que podemos pensar, uma confusão de sentimentos e pensamentos que vão se desencadeando de uma forma interessante. As palavras muito bem escolhidas!
ResponderExcluirComo todos os outros textos, apesar de ser mais curto e direto, em um parágrafo só, foi muito bom de ler! =DDDD
Continue escrevendoo!!!
Abraçãooo! Gostei muitoo
O problema é que chega no fim do texto e eu fico de olhos bem abertos mas sem saber o que dizer. Eu poderia te odiar por isso. Mas prefiro te dar os parabéns.
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