Ele foi buscar qualquer coisa na cozinha e me deixou ali. Estratégia maliciosa... Alguns minutos naquele quarto já seriam o suficiente para que eu não viesse a emitir quaisquer sons no seu retorno – a mais tenra tentativa de diálogo seria reduzida a uma conversa meramente fática. Talvez gemêssemos. Iríamos direto ao ponto, e depois do ponto, direto aos beijos de adeus definitivo. Ao mesmo tempo, aquele gesto de polidez falsa exibia, sem o demorado e inconveniente recurso das palavras, seu sustentáculo de homem firme, chefe de família e imperioso no reino que só dança ao sabor da sua vontade. E volúpias. Quando as intimidades se emparelhassem para assinar o contrato breve do prazer, nada precisaria ser dito nem tratado. Como se sua voz fosse o próprio silêncio: eu mando. Você, puta recalcada e burra, obedeça e vá embora.
Ah, querido, não pense que isso me ofende. A liberdade é um doce em drupa gorda. Desses que mais escorrem fora da boca do que dentro. E essa indignação que você projeta em mim, e exterioriza tão não galantemente, nada mais é do que o seu faro virgem invejando o meu melado que vaza, tal excesso em cachoeira. Liberdade é um balanço de criança de largura infinita oscilando em nuvens brancas, ancorado em tudo, controlando as direções em que o mundo se expande. Enquanto o seu se contrai até esse quarto agora quase leito do pecado. A infância dos desejos é onde eu vivo, não migrei para a infâmia onde você me quer. Não tenho limites porque limites me transformariam num todo indesejado e eu me tornaria um outro eu, cheio de pontas remodeladas e adestradas. Não, prefiro essas ranhuras que sangram. Que fazem poros e me conectam a mim mesma. Revolvo o destino nos dedos, mergulhando-o no caldo do que é execrável, animalesco, instintivo, atroz e incompreensível. Isso porque já estou totalmente afogada, meu bem, e suas palavras não chegam aqui tão fundo. O que eu quero de você são movimentos. Você, homem de superfície, existência comum.
Um cômodo grande, móveis caros e uma arquitetura simétrica como a fuga e o tempo. Nenhuma poeira, senão minhas partículas descamando no tapete felpudo. O cheiro era algo entre a essência da lavanda e da menta, misturadas, quase agradável. Um palácio estéril pronto para a mácula. Mas algo ali ressonava, inquieto no avesso do sossego, reverberando para me expelir do ventre. O corpo estranho, destruidor do firmamento familiar de ruínas remendadas. O aborto do mais profundo querer. Meus dedos raspavam na madeira que gemia no atrito tentando cravejar as farpas sem sucesso. As fotos encaravam-me num fitar de fúria, presas nas molduras plácidas. Todas amontoadas num palanque marmóreo ao lado de um espelho elipsóide. Meio escondidas, presas no soslaio por onde a mentira olha. Fui encará-las. Entre tantos eventos randômicos de felicidade duvidosa, um retrato das filhas.
A caçula era mais parecida comigo, havia herdado o mesmo sorriso forçado. O lábio superior pendia tosco e a boca toda era de um róseo tortuoso e esfarelado. Abraçava a primogênita para arrancar vísceras, mas a irmã era um raio quieto – semente da indiferença do pai. Aquele olhar com a pálpebra na altura média e as sobrancelhas pontiagudas era o algoz de tudo. E de tudo e entre tudo, desorganizava minha já bagunça interna com mais primor. O aviso da ira: mesmo estapeando-a, permanecia. De mim, a agora menina deflorada imitava a voz roufenha, mas com venal elegância. Era a lótus para o mundo, flutuante e serena onde os pés houvessem de pisar, imiscuindo e encantando e beijando e traindo e chorando e com vestidos floridos dançando, dançando, dançando. Por vezes via Bruno latejando olhares, desejando que eu fosse ela. Não ela envelhecida. Ela. Em toda a extensão que isso me cobre em noites como essa. A pequenina era o restolhar de uma confusão mal ordenada, e todos os dias seus dramas de criança eram explosões desconexas que só encontravam ouvidos em mim. Pelo menos a parte externa deles. É, é, é isso mesmo, jura?!, entendi filha, sim, sim... Inveja do pai, ourives pesaroso. Na madrugada, ao voltar do talvez trabalho, a menina cansada das algazarras do dia dormiria quieta. Única energia que tinha que desprender era num delicadíssimo beijo na testa, sem jamais acordá-la.
Como eu queria a sombra! Morar na sombra, vendo a luz de longe. Vendo a luz como quem vê a morte, e morar na sombra como quem está vivo. Para que não me vissem. Talvez só assim me vissem. Sentindo o aroma perfumado da erva almiscareira, do amaranto e do ademais da flora eterna que desconheço. Ou qualquer outra profusão de sensações. Rasgando a pele no gramado dos prados longínquos, rodando sobre as curvaturas das curvas e esquinas de mim e então vasculhar os abismos e as cascas do passado.
Naquela fortaleza de miséria, o único horizonte disponível era no espelho de outrora ele surgindo e me pressionando contra o seu corpo, evitando meu rosto e concentrando na nuca. Quase me dobrando a ponto de derrubar a velhacaria toda no móvel com as fotografias.
Era um belo homem, mas não sorria. Ele estaria mais feliz se minhas costas fossem minha frente. Eu também.
O contexto desse conto é tão rico, senti a inveja da moça, o quase "esconder" da cabeça. *-*
ResponderExcluirMuito bem trabalhado, as palavras bem escolhidas. .orgulho
O final então quase choca com querer ser as costas, um conto triste mas belíssimo por ter sido feito com tantos sentimentos que percebo que jamais seriam escritos bem senão dessa sua forma!!
Adoreeeeeeeeeeeeeeeeei
abração gui
Exceeeeeeeeeeeeeeeeeelente, adorei esse!
ResponderExcluirAchei o exploração da mente dela muito foda, como sempre. Seus textos são aulas de pscicologia
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirComo já tinha dito (talvez não desse jeito já que nem eu mesma lembro o que digo, enfim), adoro como a personagem imerge num universo que de fato não é totalmente desconectado do que se passa fisicamente no mundo real. Assim como ela é um mero objeto na busca do prazer do homem, ele é talvez uma válvula de escape para questionar ou apenas repensar o que vivem, o meio familiar e como este também se divide entre as filhas - reflexo dos pais, uma polarização.
ResponderExcluirÓtimo, lindo e todos os outros adjetivos bons e possíveis (:
Esse texto me deixou sem ar. Li tensa, compreendi tensa.
ResponderExcluirÉ incrível como é possível sentir cada personagem que você expõe, como se fôssemos os protagonistas.
Um dos meus favoritos, sem dúvidas.
Totalmente intenso. Fascinante a descrição das sensações e de tudo. Fascinante, também, o seu jeito poético de escrever.
ResponderExcluirVocê escreve de uma maneira profunda, envolvente.
ResponderExcluirAmei o texto. Parabéns!
Beijos
O Puro Cheiro da Morena Flor
Muito bom o seu texto.
ResponderExcluirCumprimentos cinéfilos!
O Falcão Maltês
Eu que digo que esse blog é especial. Parabéns!
ResponderExcluircontos como esse são "um contrato breve de prazer". ou não tão breve. que bom. gostei bastante
ResponderExcluirum beijo
Obrigado pela visita, rapaz. Estou aos poucos retomando o blog, publicarei alguns textos que estavam na gaveta enquanto estive ausente.
ResponderExcluirAgora comentando o seu texto: está ótimo.
Eu arriscarei sem saber o autor, em um texto de Lispector, por causa da investida psicológica.
Gostei mesmo, Guilherme.
Assim como estou voltando ao mundo dos blogs ( rs) estarei visitando o seu e dos demais com mais frequência. =D
Abraço!
Guilherme, quanto tempo!
ResponderExcluirE que prazer recebê-lo em meu blog. Pelo que pude observar, seu blog continua com o conteúdo fantástico.
Até mais!
Poço de intensidade e psicologia.
ResponderExcluirAssustado com a qualidade do texto!
amei seu blog, vou seguir
ResponderExcluiraqui esta o meu da uma passada lá bjo!
http://paraneura.blogspot.com/
Você tem uma escrita original e suas linhas detém idéias insperadas, repletas de valor...Curti !
ResponderExcluirVejo aqui um talento.
ResponderExcluirGostei desse lugar, da maneira de tua escrita.
Flores e uma ventania
de bons pensamentos, rapaz.