Como ela poderia estar tão inebriante em beleza? Os cabelos de seda negra cascateando defronte aos miúdos olhos falsamente marejados. Os traços finos suicidando no precipício do queixo, todos juntos na perfeição do retilíneo inviolável. A pele talhada num moreno lascivo que ousava brilhar. E maquiagem, não era ocasião pra maquiagem! E no útero do ódio de onde eu nascia a cada instante, nasci e odiei Marília mais uma vez.
Queria nela o caos! Os fios negros reverberando ao estapear desordenado do vento. A palidez, também dos lábios. Os punhos cerrados em revolta. Gritos, que viessem! Que tudo viesse e fosse fruto do descontrole de quem teme e de quem ama. Mas não da compostura gélida em máscara de etiqueta.
Mas só há compostura. E meu ódio-amor na dicotomia mais tenra e insaciável eram linhas que ela tecia sobre mim para o controle. Costurando na minha feição uma moldura pétrea de resignação. Costurando a boca com agulhas finas. Eu olhava. Embebido pela beleza da beleza e pela beleza de sua podridão. Pois até seu podre era belo. Erguendo-se sobre mim como uma aranha de patas em veludo. Eu na maca, prostrado em velório a mim mesmo, nada tinha senão as cartas vazias que se joga no silêncio. Os olhares cúmplices.
- Ah, meu amor, fiquei tão preocupada com você!
E cada sílaba carregava consigo toda a estiagem do mundo. Com secura de trincar minha pele já em fase de esfarelar. Seis meses que perdi. Seis meses em coma. E o soro gotejava calmo num sussurro de morte suave e longínquo, familiar. Eu olhava. Como ela estava bonita! Aproximou-se de mim como quem se interessa por um animal exótico, mas ainda com nojo. Aquela atração execrável pelo sujo. A sobrancelha tremulava alguns milímetros, ziguezagueando. Eu conhecia bem aquela postura: a de quem não suporta o fardo do segredo. E nem o fardo da verdade. Por segundos me pus a imaginar. Os outros romances. Outros presentes. O desejo ácido de que eu partisse (até eu o tenho!). Mas não sou mais receptáculo para emoções. Não sinto gosto da lamúria. As emoções não me salvaram. Então, eu apenas olhava, quieto.
Senti sua aproximação e a teia se formando. Tocou-me, mas eu não a sentia. Paralisado, via minha mão tocar a dela sem tocá-la. E toda força que havia dentro de mim era nada senão um comichão em todo lugar, em lugar nenhum. Uma coceira na base do pensamento. Um arrepiar de tudo e um impulso sem destino.
Seu olhar pendulou sobre meu punho. Claramente decepcionada. Talvez houvesse em sua postura temerosa a curvar-se um átimo de piedade a fornicar-lhe a mente. Piedade não de mim. Mas de querer encontrar em si mesma alguma fonte própria de benigna consciência. Buscando em si o que fora outrora, mesmo que teatralmente. Buscando em si os valores que a todos pertencem, ou deveriam pertencer. Pude senti-la cavando sua essência a procura de compaixão por aquela massa humana deitada afronte. Mas numa baforada de impaciência seguida de um mergulho de ambas as mãos na cabeleira fez-se a desistência semeada e germinada e crescida e regada. Os frutos degustados. A semente, cuspida na minha face. Fui dissecado. O corpo exaurido, imprestável, varrido por um obelisco feminino aos pedaços, ainda que por fora intacto. Eu: o vegetal de olhos abertos que nada podia oferecer senão a ausência de palavras.
Um estridor reverberou nas paredes brancas do meu último leito. Aquele som estava em algum lugar da minha memória, perdido entre tantos outros arquivos prontos para serem queimados. Era seu celular.
- Alô? Sim, estou com ele. Não posso falar por muito tempo. Não se preocupe, não se preocupe. Não demorarei aqui. Passei para ver se ele podia falar. Mas não pode. Não se preocupe, não se preocupe.
Que estranho, ela nunca gostara de jóias! Mas um colar de safiras retinia num azul singelo, coroando-a tímido, porém imperioso. Ela gostava de azul, então eu só comprava gravatas azuis. Mas nunca jóias. E meu último movimento, meu adeus à humanidade, fora tingido de azul. Na escada, antes do firmamento padecer, pintava num azul bem leve o quarto do nosso filho que viria e não sei se veio. Ah, talvez eu seja pai...
ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
ResponderExcluircomo sempre imagens muito ricas gui!! =DDD
adorei o conto, cheio de perguntas no final que dão margem pra quilos de imaginação e escrever o resto do conto mentalmente.
Os traços se suicidando'' *o*
fodaaao transferindo a situação do doente, em sentimento para aquela que o obeserva!
ADOREI!
abraçaeee gui
não para de escrever não ^_____________________________^
um dos teus melhores textos, certamente!
ResponderExcluirnão sei se é porque estou mais sensível hoje,
ResponderExcluirou se porque já me esqueci dos meus contos preferidos..
Fato é que este, fez com que eu engolisse seco, sem saber o que comentar.
Saiba que seus contos, não são meramente textos
pra que em um possivel momento livre, eu possa vir elogiar..
Eles são
sobretudo um meio que tenho de percorrer um mundo a parte. Um meio que agrega meu vocabulário e enriquece meu dia a dia. Ainda mais eu, q mal tenho tempo pra ler livros que contenham conteúdo veterinario, quanto mais ler coisas cults por fora.
Resumindo, me MANDE vir aki sempre.
Me inspira, me acrescenta, me enriquece.
Ficou muito bom.
Obrigado por me propiciar alguns momentos
como esse.
Beijo !
Devo dizer que você me ofereceu um bom momento.
ResponderExcluirEmbriaguei-me com tuas palavras.. e devo confessar de que com a distancia que ando tendo com este mundo 'OnLine' eu já havia me esquecido de quão rara é a tua escrita, me fez viajar aos tempos que aguardava algo do Caio Fernando, eu sempre ficava esperando a hora que saísse uma nota no jornal que dissesse: livro novo!
E confesso também que seria muito bom se a nota do jornal de amanhã falasse de um livro teu.
Parabéns e muita paz!
Olá!
ResponderExcluirPassando para agradecer o carinho em meu blog!
Te acompanho agora!
Aproveitando, quero lhe desejar uma ótima Páscoa!
Muito chocolate pra ti!
ahaha
Beijos meus
Gostei daqui....seguindo então!!!
ResponderExcluirDeu-me um gosto de escuro azul na boca.
ResponderExcluirMaravilhoso, Guilherme! Você escreve muito bem! Leitura muito,mas muito prazerosa.
ResponderExcluirE essa história é tão profunda,detalhada e bela que me fez sentir.
Acho que agora é a minha preferida. ^^
Conseguiu me deixar completamente anestesiado pelas tuas palavras, e estimular a minha mente de um jeito único que apenas você sabe fazer.
ResponderExcluirSó uma coisa a dizer: mais, mais e mais!
Abraço! \o
de tudo e tanto, uma palavra me chamou atenção: azul.
ResponderExcluirÉ tudo muito azul do lado de dentro, sabe moço?
Dúvida que, para mim, seria cruel. Talvez não seja.
ResponderExcluirAdorei!
Nossa muito legal isso"
ResponderExcluirAbraçoss"
(L)
Você é bom cara, continue!
ResponderExcluirabraços poéticos.....
Heey, Guilherme! Achou meu blog, que bacana! Peço desculpas por não ter podido responder antes, meu blog anda um tantinho abandonado, sabe, sem tempo rs'
ResponderExcluirFico feliz que tenhas gostado do meu blog, devo dizer, o teu é lindo! Quanta sensibilidade, é admirável. Estou a seguir, beijos ;*
Entre o ser e não ser. Animal e vegetal. Moldando-se a nova situação, vendo o que foi esvaindo-se. Você vive os personagens. Parabéns.
ResponderExcluirMe encanto com suas palavras!
ResponderExcluirdois pontos fortes:
ResponderExcluir-Rica descrição.
-O texto consegue ser perturbador e adorável ao mesmo tempo.
Muito bom :)