quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dissecação



É bem verdade que me pus naquela situação de uma forma nada espontânea. Fingi um atraso e, sabendo que ele sempre se assentava nos fundos à direita, foi nessa direção que caminhei meio que trepidando, como se não tivesse escolha. Mentira: aquele era exatamente o espaço que eu mais almejaria estar em toda a Terra. Há uma carteira de distância.

Cruzei os braços e aninhei a cabeça, numa postura que poderia ser interpretada como tediosa ou sonolenta. Para que eu pudesse observar, e só observar. E aqui estou. Antes que eu me perdesse em pensamentos fantasiosos e alegres que me erguessem ao reino do amor, percebi de imediato que eu já não estava no meu próprio universo. Nunca antes houve tão pouco ar entre nós dois, e sinto agora que em seu mundo o ar tem uma consistência diferente. Sobretudo o aroma. Não é nada parecido com perfumes convencionais. Nem doce, nem ácido. Eis um cheiro forte, que exerce certa pressão confortante. Tento localizar sua fonte, mas não consigo. Tampouco sei se é de fato um perfume, um desodorante ou simplesmente uma aura natural que ele exala – o que me parece bem plausível. Entrou até pelos meus olhos e me vi abrindo um pouco a boca na estupidez da tentativa de sorver mais daquilo.

Calor...

Meus olhos titubeiam na margem das pálpebras. Hesitando. Eu estou hesitante e só. A exposição dos outros sentidos carrega uma percepção subjetiva mais acolhedora. Mas a visão é muito delicada. A imagem crua da realidade surge para mim uma possibilidade ofensiva em demasia. O meu desejo estando ali, ali poderia estar também minha maior dependência. Minha maior fraqueza. Minha maior utopia. Eu sairia da confortável atmosfera da ilusão para adentrar no que é concreto, mas talvez intangível e, por esse paradoxo, algo lascivamente sôfrego. E mesmo sobrenadando tantas reflexões sei que, como um ímã escravo da magnetização, meus olhos certamente se alinhariam nele. Decido por antecipar o inevitável.

E como jamais amá-lo? Como jamais me atentar outrora para aquela silhueta que surge como qualquer coisa entre o desalinho perfeito e um desajuste coeso? Afundo mais em mim. Era para ser uma dissecação visual fria e precisa, mas veio de dentro, de onde não tenho acesso. Eis diante de mim, a boca. A terra fértil de minhas volúpias. Os lábios quase crispados se contorcem numa diagonal de pouca curva. Nas margens onde eles se encontram há pequenas rachaduras. Ali o superior e o inferior nascem gloriosos. Ambos num tom de carne viva e assim se cora meu rosto. O de baixo mais proeminente, invadido por pequenos sulcos que me levam a bancarrota. Vão desenhando raízes e raios e rotas e rugas. Logo lateralmente ao centro, duas regiões de maior protuberância exibem um pouco do vermelho líquido da mucosa interna - uma fornada de desejo. E duas de arrepios. Volto. Volto porque as portas daquelas terras daquelas volúpias se abrem o mínimo exato para me paralisar. Dois dentes se mostram. Um pouco fenestrados ao centro, mas simetricamente poligonais. Até pontiagudos nos cantos. E o conjunto – boca e dois dentes –, que não era extremamente carnudo ou pateticamente fino beirando o feminino, leva-me ao espasmo da harmonia execrável. Essa era a palavra que borbulhava fria no meu estômago: harmonia.

E a viagem prossegue. Sem exaustão. Só do pescoço pra cima. Não tenho as rédeas de meu controle e as balizas de minha promiscuidade. Portanto, do pescoço pra cima.

Abaixo do queixo a pele é bem rente e isso me felicita. Dá pistas sobre seu corpo... Preciso de força. Ele não pára de exalar esse aroma! Pequenos fios de uma pelugem – absurdamente! – organizada salpicam a região para-bucal em círculos concêntricos na bochecha. Como gramíneas a forrar um relevo acidentado. Acne pregressa, parecia-me. E mergulho em devaneios: na hemiface esquerda uma pequena cicatriz me provoca. Quais seriam os segredos? Quais tipos de frustrações e anseios ele teria? Ah... O amargo interesse pelo pecado, pelo erro, pelo atroz. Por sorver o que havia acontecido por cima daquele relevo e por entre aquelas gramíneas negras. Estar ali e escavar até o subsolo com a mão. Para separar o barro. E quem sabe comê-lo? Sorver os momentos de raiva, de solidão, de punhos cerrados desferidos sem motivo nas paredes que sustentam suas dores. Cuspir na sua privacidade. E que ele cuspisse na minha.

Suas têmporas, que se coloriam de vermelho de tempos em tempos e isso eu já observara de antemão, estavam agora bastante pálidas. Ambas avançavam alguns centímetros da linha dos olhos como se temessem perdê-los dissolvidos. Duas ondulações configuram-no como marcadamente retilíneo. Um belo paradoxo... Onde tudo se afina até chegar ao queixo numa perversa simetria. No queixo, numa serena brutalidade, as linhas de pele vindas de todas as direções encontram o derradeiro precipício. As imperfeições eram como quadros caros numa parede branca: nem sempre apresentáveis, mas, por serem caros, são orgulhosamente exibidos. Eu não saberia dizer com precisão, ainda que eu faça das palavras as armas de minhas guerras e as guerras de meus dias, o que se escondia naquele mapa que o fazia detentor de tanta magnitude. Porque eu não ousaria chamar de beleza, simplesmente. Vai além. Quase sou capaz de tatear uma consonância do que há dentro com o que há fora. Como se a forma que o esculpisse fosse reflexo de sua trajetória. Cada curva, um desalento. Cada cicatriz, uma vitória (a do dedo mindinho, a do queixo resignado). Tatuagens naturais que a alma faz. Vi-o engolindo qualquer coisa e quis ser essa coisa. A entrar sem pensar em onde parar por não querer parar nem para pensar. Para quê pensar se a lógica é amar? E então abro os olhos, de verdade.

E, nessa mesma desgraçada verdade que me põe aqui de cócoras, dou-me conta: não havia ninguém ali. Somos um espelho e eu. Vejo alguém bebericando o fim de seu delírio como um viciado aspira o último resquício da droga.