segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Toma o meu silêncio


Ela pousou cuidadosamente a xícara na mesa - como se aquele gesto, se atabalhoado, fosse quebrantar qualquer coisa sagrada que nos protegeria -, incapaz de me dirigir o costumeiro olhar sumarento. Eu sorri, ainda assim. Permaneceu alguns segundos observando as ondas do café na lagoa de porcelana, velejando na calmaria dos líquidos, tão diferente da balburdia ao redor.

- Eu sei que não posso pedir isso, mas eu não queria que você chorasse.

Seus fios de cabelo pareciam pequenas asas de inseto. Se estapeavam à revelia do vento para depois se acomodarem em grandes grumos de cor escura, trabalhando tranças que faziam estradas entre suas camadas de flores e frutos. Cruzei os braços sobre a mesa e afundei a cabeça entre eles, lateralmente, a observar a movimentação das outras pessoas naquele caos de palavras e lágrimas.

- Não chorarei.

Ela deitou sobre minha cabeça fazendo as nossas orelhas opostas se beijarem num vácuo de concha. Uma posição habitual de nós duas, das tardes em que deitávamos no chão para ver o mundo de baixo. Mas havia um suor gelado vindo dela, componente novo. Sua pele sempre fora tão seca para afagos e beijos... Ficamos assim, ao dissabor do burburinho dos relógios. Eu gostaria de esgotar todas as palavras do mundo, e cerrei as pálpebras na tentativa de encontrá-las. Suicidaram nos precipícios tantos da consciência. Meu presente de despedida seria o meu mais particular e execrável silêncio. Eu lhe daria meu silêncio. O meu silêncio é muito mais trágico que as torrentes de lágrimas que ela tanto temia. O meu silêncio é uma praia antiga aonde o mar nunca chegou. É uma ilha submersa em sangue. É o suicídio feliz.

- Bem, eu preciso ir ao banheiro... Estou apertada!

Tão delicada em seus movimentos que eu precisei retesar até sentir o grito da panturrilha nas pernas, para não ceder ao contrato e me ajoelhar e vociferar chantagens proibidas e gritar e morrer. Para que ela então ficasse. Desejei ter asas, mas o que ela me deu foi o aroma simples de uma rosa branca, efêmera e plácida diante da morte. Dissolveu-se no ar. E assim tão simples, havia uma cumplicidade solene entre as intenções para construir as pétalas e as intenções por trás de tudo, onde todas elas nasciam. Pude vê-la diminuir ao horizonte como um verdadeiro ponto sem cor, e então ela desapareceu entre vultos e destinos, entre correntes. O tempo havia cravejado a sua foice implacável em nós, e ela então voaria para outros braços e outros sorrisos.

Não sei quanto tempo se passou que fiquei ali, deitada, tentando entender o que acontecia dentro do corpo. O tremor, as palpitações, as visões de futuro. Com os olhos fechados dos que precisam urgentemente costurar memórias para consolar a alma, murmurei o ódio e praguejei Deuses como nunca antes na história da humanidade. Acho que foram horas, várias horas. Sei que fiquei ali. Fiquei ali como prova da qualidade de raiz que eu a oferecia. Fiquei ali até que o orgulho me beijou na testa e me fez dormir. 

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